Clarice
por
Arnaldo Brites Filho
Apresentação
Clarice nasceu assim, como o sol entrando manso por entre uma janela, tomando o espaço e se fazendo presente. Peço que não me culpem pelo destino desta menina, pois ela traçou sem querer, e contra minha vontade, um trágico caminho; como vocês saberão ao virarem estas poucas páginas.
Mas, caro leitor, Murilo ainda carrega no lugar mais secreto e inviolado do seu coração o amor por esta menina, (menina porque ela não tivera a graça ou quem sabe o azar de chegar à fase pós-adolescência) pelo menos, assim ele me afiançou o que creio muito, dado nossa íntima amizade.
Só sei que no dia de finados não me esqueço desta menina, além do que, é neste dia que um incômodo encargo de consciência teima em atribuir a mim a triste sina que esta menina teve.
ABF
Dia de finados, num cemitério mais além da cidade, um homem que aparentava ter uns trinta e poucos anos, feição cansada e triste, rezava ante um pequeno túmulo. Mais adiante sua esposa acendia algumas velas, quem sabe, para alguns parentes já falecidos que repousavam naquele local; acompanhada de sua filha, Clara, que grudada à sua saia não pensava em ficar um metro longe dela.
O que será que se passava na cabeça daquele senhor? Pois já faz mais de meia hora que está ali, parado, com os olhos fitos na foto de uma pequena moça na lápide, de sorriso tão cheio de vida e um olhar tão alegre como que de um anjo.
Espere!
Acho que estou escutando seu coração falar! É o eco mais doce e triste que já ouvi... Está ficando mais claro, escutemos este sopro que vem de seu peito, do fio mais íntimo e secreto das recordações daquele homem, e busquemos entendê-lo e conhecê-lo melhor, silêncio...
E escutemos...
Clarice, menina travessa que morava na rua de cima, perto da mercearia do Turco, gostava de passar todo dia em frente de casa pra me provocar. Ela sabia que eu gostava dela, e sentia muito gosto de me judiar o coração por eu estar sempre de boca aberta para o seu lado. Mas, o que ela não conseguia disfarçar, mesmo a contra gosto, que também gostava de mim. Virava a cara. Disfarçava. Seu ego não consentia que seu coração dominasse sua linda pessoa, era cabeça dura, dura feito pedra. E que “pedra no meio do meu caminho”, e no meio do coração dela! Puro dengo! Talvez...?
Seu pai tinha uma chácara no extremo da cidade, lá ele ia todas as manhãs para cuidar de tirar o leite, e vir cedo para dar a sua bela filha. Ah! Se eu que fosse fazer isso! Iria com o maior prazer todos os dias, não cobraria nada. Vinha correndo pra casa dela, e diria que tudo mais que ela quisesse eu faria; até ir ter com o pai dela, embora tivesse cara de bravo e eu quase nove, eu ia! Ia mesmo! Então ela saberia que tinha muito amor por ela; ela seria minha esposa e como tal, eu seria para ela um marido, mas não um marido comum, um marido que deitaria, nos dias de chuva, se fosse preciso, na poça d’água, para ela não molhar seus delicados pés de boneca cara.
Clarice um dia me disse, que, se eu não contasse pra ninguém ganharia um beijo, fiquei pensando naquilo por dias, esperando a vontade dela. Ela novamente brincara comigo, mas não liguei, gostava de ser para ela, o bobinho da corte do seu reino. É! Do reino dela! Claro! Porque Clarice é princesa, princesa tão bela, que todos os dias da janela, tirava seu lindo rosto, tão bonito como o sol daquelas fagueiras manhãs, só pra me provocar, porque sabia que eu ficaria, da minha casa, a babar, feito gato ao pé da cozinheira que martela o rubro bife! Suculento, mas, que tem o triste fado de não o pertencer! Porém, ao contrário do destino do gato, eu pressentia que aquele bifinho, ou melhor! Aquele filezinho seria meu algum dia! Ah seria!
Seu rosto belo trazia uns olhos mais belos ainda; belos como as rosas dos vasinhos, na beirada da janela, olhos que disfarçavam querer ver o céu, a roseira na frente, “mas não a mim!” Sei! Ela queria é que eu a visse! Que eu ficasse a babar de amor... Oh! Clarice. Se soubesses que eu sabia desde sempre do seu amor, ai você saberia que belo dengo fazia... Se já não sabia! No entanto, a história não começa aqui, começa desde a nossa mais afastada infância. Ah sim. Nossa infância de quando pra disser a nossa idade, demorava-mos a escolher a quantia dos tenros dedinhos nossos, para assim depois dizer quantos anos tínhamos. Sim, nossa infância foi a melhor das nossas cúmplices. Clarice moça bonita roubara meu coração desde o dia em que a vi. Seria aos seis? Mais antes? Talvez quando ainda éramos anjinhos no céu! De onde voltastes tão rápido... Lembro-me em que num dia heroicamente a defendi de um furibundo animal, travei com ele a mais dantesca das batalhas, resultado...: Uma bela mordida no meu traseiro! Mas valeu a pena; Clarice me disse que desde então eu era o seu herói, seu único herói, e daí ganhei o seu primeiro beijo, e o primeiro de uma menina, como foi doce! Ainda não me deixo de recordar, na recordação da ingenuidade da juventude, daquele beijo mimoso, com que ela me presenteara; fiquei vermelho, nem sentia a dor da mordida do buldogue do vizinho.
__ Isso que dá! Minha mãe disse. Querer sair sozinho pra apanhar manga... E repetia que todo mundo sabia que seu Elias tinha um cão feroz. No entanto nem liguei. Ia com Clarice; por ela eu ia até o fim do mundo, que para nós tinha os limites da quadra... Que beijo doce, embora fosse no rosto! Tinha cheirinho de manga! Por isso toda vez que pego a chupar manga me lembro de Clarice, daquele beijo doce!... Mas apanhei, apanhei feito um coitado. Oh! Raminho doído aquele, ardia... __ Isso que dá querer teimar repetia minha mãe! E meu pai, preocupado com os prováveis efeitos da mordida, monologava... __ Espero que não arruíne! Espero que não arruíne! __ Clarice e eu riamos depois, ela debochava!
__ Que belo lugar pra se levar uma mordida hei?! Então eu lembrava-lhe que o beijo valera a pena! Então ela se corava como do momento que me olhou depois do beijo! Algo me dizia que antes ela já gostava de mim, agora eu tinha certeza!
Ainda me recordo do primeiro dia de escola... Começamos juntos, eu sentava do lado dela. Sua extrema exigência! Desde o primeiro dia. Era um mundo diferente ao que estávamos acostumados. Sempre comentávamos como seria. Quanta criança junta. Olhava pra todos os lados pra ver se não tinha nenhum menino a se meter de bobo com Clarice.
Ela e eu destacávamos; tínhamos os melhores conceitos, se havia uma pintura a fazer, fazíamos sempre juntos. Nosso tema preferido era desenhar nós dois brincando debaixo da ingazeira, da nossa ingazeira, que ainda está lá, forte e firme, guardando também comigo a lembrança dela, de nossas brincadeiras...
Voltávamos para casa pelo mesmo caminho, deixava-a na frente da casa e vinha todo contente à minha. Depois do almoço ela vinha em casa, senão eu ia lá à dela.
Clarice no outro dia, logo após a mordida, foi em casa. Estava envergonhado da mordida, não por eu ter se deixado ferir, era o cômico lugarzinho que aquela besta mitológica escolhera para me morder. __ Ela veio... Disse meu pai entrando no meu quarto. __Ela! Quem? Fingindo não saber de quem se tratava... __ Ela moleque! Quem mais? Vá recebê-la coitadinha. Parece que temos um herói! Dizia-me com um ar de ironia que me lembro muito bem. Levantei meu corpinho abatido e meu bumbum ferido, doía muito, estava manco. __ Que vergonha! Dizia comigo. Ela estava lá, com o seu mais bonito vestidinho, branco como o algodão; cabelo prendido com uma tiara ornada com uma linda flor. Sentada num banco, suas perninhas balançavam na altura do assento, cortando o ar. Usava um sapatinho preto com uma meia de renda que ia dar nos joelhos. Ao me ver baixou a cabeça, fincou seus olhos no chão batido, como a contar formiguinhas. Minha mãe gritou alto da cozinha:
__ Querido vão debaixo da laranjeira que tô preparando um suco de maracujá bem gostoso pra nós.
Os olhos dela brilharam. __ Vai ter bolinhos também? Perguntou-me faceira.
__ Não sei Clarice, mas vou ver! Corri até a cozinha em que achei minha mãe colocando uma grande jarra numa bandeja para levar o suco.
__ Mãe! Queremos bolinhos!
__ Não fiz querido.
__ Mas!
__ Nem mas, nem menos, vá logo que já estou indo. Vá, vá, vá...
__Mas mãe!
__Claro que têm filhinho já vou levar seus bolinhos! Rindo para mim... E sai correndo pra perto de Clarice. A achei no balanço. Balançava-se ao pé da laranjeira, fincando seus pezinhos no chão para tomar mais e mais impulso. Ia bem alto. Perto do céu a falar com os pássaros e confiar-lhe seus sonhos de criança. Mancava um pouco. __ Ainda dói? Perguntava-me com um olhar triste. __ Não! Dizia. __ Eu sou homem e homem não sente dor. __ Ah, já tá mentindo né gurizão, aqui está o suco Clarice. __ Não sente dor mesmo mãe. __ Então por que você abriu o berro quando lhe dei uma cosa ontem? Clarice ria e ria.
__ Mãe!
__Calma filho, estou brincando.
__ Viu Clarice!
Tomamos o suco, ela queria brincar, mas se lembrava de que sua mãe pedira para não sujar o vestido. Então brincamos de esconder na frente de casa, eu sempre ia pra árvore tampar o rosto e contar até dez, enquanto ela se escondia. Era uma grande ingazeira, muito cheia de frutos naquela ocasião, e que servia para o nosso suprimento quando cansávamos de brincar. __ Pronto! Já vou! Gritava pra ela.
Clarice sempre se escondia em três lugares, mas fingia não saber, só pra fazer o agrado dela. Fingia que não a via correr para a árvore, corria a trás dela, ela de mim, seu vestido dançava ao sabor do vento, seus cabelos ondulantes também, da ingazeira vinha um cheiro característico. Tudo isso me enchia de uma energia incompreensível, me jogava na graminha, ela também, se esquecia da brancura do vestidinho, brancura? Não, agora se coloria num vermelho muito forte, com as muitas marcas de sua mãozinha. Quando se dera conta, já era tarde. __ Ih! Mamãe vai me bater, olha o vestido, tá todo sujo...
__ Calma que eu não deixo ela te bater! Eu falo pra ela me bater e você não.
__ Não adianta! Ela vai ficar braba comigo, já vou, tchau!
E ia correndo para a casa, e eu ficava a vê-la sumindo na esquina. Já ia mais um dia!
Crescemos e crescemos, ela ficou mais bonita, e dada a me fazer de capacho! Aos catorze anos, ainda não conseguira roubar-lhe um beijo de verdade, mas fazer o quê?
Clarice e eu estávamos mudando, e que mudança, agora além dos friozinhos que me dava ao chegar perto dela, acontecia coisas estranhas, que se eu não disfarçasse, ela acabaria percebendo! Era só eu olhar para ela, para aquele sorriso mudado, mais carnudo, e mais brilhoso, me entorpecia todo, minha pele queimava; meu pai, começava a dizer: __ Como esse menino demora no banheiro! Deve tá fazendo arte!
Mas não adiantava lutar contra aquelas forças, era involuntário... E não era só o sorriso mudado... Não, não era! Seu corpo ficara mais bonito, e mais volumoso em algumas partes, redondinho em outra, até as pernas que eram fininhas, agora, engrossaram, meus olhos não me obedeciam... Clarice, dizia: __ Você, você! Eu sei onde seus olhos caminham! E ria de mim, e eu disfarçava, afundava minha cara no chão! Ela ria, e como ria... Mas era só olhar, com minha cara de sonso, para aquele rostinho pipocado de espinhas, que por sinal lhe fazia mais bonita e diferente, que ela ficava toda vermelhinha! Vermelhinha de vergonha!
Era março, dia vinte. Um dia muito especial, seu aniversário de quinze anos; seu pai, senhor Feliciano, deu uma festa muito bonita, vararia a noite para os que soubessem beber, era uma gritaria só. Clarice estava linda, usava um vestido branco muito lindo; em seu semblante pintava-se um ar de felicidade excepcional, em seus olhos rebrilhavam uma constelação inteira, em seu sorriso um ar de mulher feita; a Clarice criança, ficava então no passado, via uma mulher, embora a idade ainda lhe puxasse para a infância. No entanto, algo parecia mudá-la. Seu pai estava bastante comovido, sua mãe também.
Dançou com seu pai, depois com seu padrinho; ficava a fitá-la, ela então veio até a mim, convidou-me para dançar também, fiquei muito lisonjeado. Dançamos. Pisava no céu, sua cintura fina, sobre as minhas mãos, seu cabelo a roçar minha face, no ritmo da dança, o perfume suave, e seu hálito fresco me entorpecia. Ela estava calada, apenas um sorriso de satisfação cobria sua face corada pelo ruge.
A um momento confiou-me ao ouvido um segredo, que me deixou desnorteado de felicidade; o mundo girava conforme dançávamos...
__ O que? Repita Clarice!
__ Te amo! Murilo...
__ Eu... Eu também Clarice! _ Sussurrei ao seu ouvido.
__ Quero ser sua a vida inteira...
O baile se estendia, estava ficando tarde, Clarice se sentou ao lado de sua mãe que estava conversando com algumas senhoras.
Fui até ela para me despedir, feliz do que ela me confidenciara, seu amor era tudo que eu queria, enfim seria correspondido. Despedi-me. Então sai todo cheio de felicidade, estava já a uma boa distância da casa dela, quando escutei uma voz me chamado aos sussurros, virei para trás, e vi Clarice correndo na minha direção. Ela me abraçou forte, me beijou sofregamente, sentia nossas almas se tocarem e se beijarem também, seus lábios úmidos e sua língua delirante amalgamavam com minha boca sequiosa por aquele tão esperado momento.
Estávamos no meio da rua, um pouco iluminada, corríamos o risco de alguém nos ver; alguns convivas já despontavam ao longe na rua indo para suas casas.
Fomos então para debaixo da ingazeira, o céu estava repleto de estrelas, batia uma refrescante brisa, e o farfalhar da ingazeira compunha uma linda sinfonia para nós dois; ela estava linda toda de branco, parecia um anjo vindo do céu para me fazer conhecer as nuvens, pois o chão não mais existia sob meus pés. Só a ingazeira e as estrelas souberam o que fizemos e como foi bom.
Deitamos cansados na grama, ríamos de loucura que fizemos e das varias maneiras que nos amamos naquele momento, ela me descobrira e eu a ela; olhávamos para o céu estrelado que se desvendava por entre os galhos da frondosa ingazeira; uma coruja piava ao longe, e nós ali, deitados exaustos de tanto nos amarmos, nossos cheiros se espalhavam carregados pela brisa que refrescava os nossos corpos extasiados e nossas faces coradas.
Clarice despediu-se de mim, pois já se fazia muito tarde. Em casa deitado na cama não conseguia esquecer daquele momento, daquele sublime momento, quando escutei vindo da direção de sua casa um barulho que parecia ser de fogos de artifício, estavam ainda em festas, deduzi; dormi, dando por mim somente no outro dia.
Levantei, chamei minha mãe e meu pai, ninguém me respondeu, sai pra fora com meus olhos coagidos pela luz intensa do sol; achei minha mãe e meu pai, um ao lado do outro, com os olhos fustigados, pareciam ter chorado, perguntei a eles o que havia acontecido, mas não me responderam, olharam pra mim, e o silêncio frio que vinha deles acusava algo terrível que havia acontecido. Minha mãe se levantou e vindo na minha direção me abraçou fortemente.
Olhei para ela e disse:
__ Por favor, mãe me conte o que aconteceu.
__ Filho algo terrível aconteceu com uma pessoa que amamos muito, especialmente você.
__ Com quem mãe pelo amor de Deus me conte! Com quem?
__ Ontem aconteceu uma briga na festa da Clarice, alguns homens estavam bêbados e houve uma discussão entre dois deles, então um homem atirou em outro, mas acabou atingindo Clarice...
__ O que mãe? Não pode ser! Como ela está mãe, por favor? Uma dor terrível me dominou o corpo e a alma naquele momento, meus olhos ardiam, pegavam fogo, as lágrimas como se fossem ácidos rasgavam meu rosto...
__ Por favor, mãe, me diz que ela está bem!
Minha mãe me apertou mais forte contra seu peito, então me disse:
__ Ela não agüentou filho...
__ Não! Não!
Fiquei mudo, não conseguia falar, minha língua gelara, engolia soluços amargos, meu peito partia-se em dor tamanha que nunca sentira antes... Vinha-me na cabeça Clarice, seu lindo rosto, seus olhos a me fitarem profundamente.
Não mais sorri por muito tempo; meus pais não me deixaram ir ao enterro, ouvia pelas conversas entre eles que nunca se viu tão forte comoção naquele dia na suas vidas, a cidade morreu para mim, e para os pais daquela menina. A ingazeira chorava comigo sem ninguém saber...
__ Pai! Pai! Por que está chorando papai?
__ Nada minha filha! E sua mãe já acendeu a vela pra vovó?
__ Sim pai! A mãe agora já tá vindo, ela falou pra mim vir aqui com o senhor... Quem é esta menina que tá enterrada aí pai? Ela era tão bonita...
__ É uma pequena princesa minha filha! Minha pequena princesa!
***
Clarice nasceu assim, como o sol entrando manso por entre uma janela, tomando o espaço e se fazendo presente. Peço que não me culpem pelo destino desta menina, pois ela traçou sem querer, e contra minha vontade, um trágico caminho; como vocês saberão ao virarem estas poucas páginas.
Mas, caro leitor, Murilo ainda carrega no lugar mais secreto e inviolado do seu coração o amor por esta menina, (menina porque ela não tivera a graça ou quem sabe o azar de chegar à fase pós-adolescência) pelo menos, assim ele me afiançou o que creio muito, dado nossa íntima amizade.
Só sei que no dia de finados não me esqueço desta menina, além do que, é neste dia que um incômodo encargo de consciência teima em atribuir a mim a triste sina que esta menina teve.
ABF
Dia de finados, num cemitério mais além da cidade, um homem que aparentava ter uns trinta e poucos anos, feição cansada e triste, rezava ante um pequeno túmulo. Mais adiante sua esposa acendia algumas velas, quem sabe, para alguns parentes já falecidos que repousavam naquele local; acompanhada de sua filha, Clara, que grudada à sua saia não pensava em ficar um metro longe dela.
O que será que se passava na cabeça daquele senhor? Pois já faz mais de meia hora que está ali, parado, com os olhos fitos na foto de uma pequena moça na lápide, de sorriso tão cheio de vida e um olhar tão alegre como que de um anjo.
Espere!
Acho que estou escutando seu coração falar! É o eco mais doce e triste que já ouvi... Está ficando mais claro, escutemos este sopro que vem de seu peito, do fio mais íntimo e secreto das recordações daquele homem, e busquemos entendê-lo e conhecê-lo melhor, silêncio...
E escutemos...
Clarice, menina travessa que morava na rua de cima, perto da mercearia do Turco, gostava de passar todo dia em frente de casa pra me provocar. Ela sabia que eu gostava dela, e sentia muito gosto de me judiar o coração por eu estar sempre de boca aberta para o seu lado. Mas, o que ela não conseguia disfarçar, mesmo a contra gosto, que também gostava de mim. Virava a cara. Disfarçava. Seu ego não consentia que seu coração dominasse sua linda pessoa, era cabeça dura, dura feito pedra. E que “pedra no meio do meu caminho”, e no meio do coração dela! Puro dengo! Talvez...?
Seu pai tinha uma chácara no extremo da cidade, lá ele ia todas as manhãs para cuidar de tirar o leite, e vir cedo para dar a sua bela filha. Ah! Se eu que fosse fazer isso! Iria com o maior prazer todos os dias, não cobraria nada. Vinha correndo pra casa dela, e diria que tudo mais que ela quisesse eu faria; até ir ter com o pai dela, embora tivesse cara de bravo e eu quase nove, eu ia! Ia mesmo! Então ela saberia que tinha muito amor por ela; ela seria minha esposa e como tal, eu seria para ela um marido, mas não um marido comum, um marido que deitaria, nos dias de chuva, se fosse preciso, na poça d’água, para ela não molhar seus delicados pés de boneca cara.
Clarice um dia me disse, que, se eu não contasse pra ninguém ganharia um beijo, fiquei pensando naquilo por dias, esperando a vontade dela. Ela novamente brincara comigo, mas não liguei, gostava de ser para ela, o bobinho da corte do seu reino. É! Do reino dela! Claro! Porque Clarice é princesa, princesa tão bela, que todos os dias da janela, tirava seu lindo rosto, tão bonito como o sol daquelas fagueiras manhãs, só pra me provocar, porque sabia que eu ficaria, da minha casa, a babar, feito gato ao pé da cozinheira que martela o rubro bife! Suculento, mas, que tem o triste fado de não o pertencer! Porém, ao contrário do destino do gato, eu pressentia que aquele bifinho, ou melhor! Aquele filezinho seria meu algum dia! Ah seria!
Seu rosto belo trazia uns olhos mais belos ainda; belos como as rosas dos vasinhos, na beirada da janela, olhos que disfarçavam querer ver o céu, a roseira na frente, “mas não a mim!” Sei! Ela queria é que eu a visse! Que eu ficasse a babar de amor... Oh! Clarice. Se soubesses que eu sabia desde sempre do seu amor, ai você saberia que belo dengo fazia... Se já não sabia! No entanto, a história não começa aqui, começa desde a nossa mais afastada infância. Ah sim. Nossa infância de quando pra disser a nossa idade, demorava-mos a escolher a quantia dos tenros dedinhos nossos, para assim depois dizer quantos anos tínhamos. Sim, nossa infância foi a melhor das nossas cúmplices. Clarice moça bonita roubara meu coração desde o dia em que a vi. Seria aos seis? Mais antes? Talvez quando ainda éramos anjinhos no céu! De onde voltastes tão rápido... Lembro-me em que num dia heroicamente a defendi de um furibundo animal, travei com ele a mais dantesca das batalhas, resultado...: Uma bela mordida no meu traseiro! Mas valeu a pena; Clarice me disse que desde então eu era o seu herói, seu único herói, e daí ganhei o seu primeiro beijo, e o primeiro de uma menina, como foi doce! Ainda não me deixo de recordar, na recordação da ingenuidade da juventude, daquele beijo mimoso, com que ela me presenteara; fiquei vermelho, nem sentia a dor da mordida do buldogue do vizinho.
__ Isso que dá! Minha mãe disse. Querer sair sozinho pra apanhar manga... E repetia que todo mundo sabia que seu Elias tinha um cão feroz. No entanto nem liguei. Ia com Clarice; por ela eu ia até o fim do mundo, que para nós tinha os limites da quadra... Que beijo doce, embora fosse no rosto! Tinha cheirinho de manga! Por isso toda vez que pego a chupar manga me lembro de Clarice, daquele beijo doce!... Mas apanhei, apanhei feito um coitado. Oh! Raminho doído aquele, ardia... __ Isso que dá querer teimar repetia minha mãe! E meu pai, preocupado com os prováveis efeitos da mordida, monologava... __ Espero que não arruíne! Espero que não arruíne! __ Clarice e eu riamos depois, ela debochava!
__ Que belo lugar pra se levar uma mordida hei?! Então eu lembrava-lhe que o beijo valera a pena! Então ela se corava como do momento que me olhou depois do beijo! Algo me dizia que antes ela já gostava de mim, agora eu tinha certeza!
Ainda me recordo do primeiro dia de escola... Começamos juntos, eu sentava do lado dela. Sua extrema exigência! Desde o primeiro dia. Era um mundo diferente ao que estávamos acostumados. Sempre comentávamos como seria. Quanta criança junta. Olhava pra todos os lados pra ver se não tinha nenhum menino a se meter de bobo com Clarice.
Ela e eu destacávamos; tínhamos os melhores conceitos, se havia uma pintura a fazer, fazíamos sempre juntos. Nosso tema preferido era desenhar nós dois brincando debaixo da ingazeira, da nossa ingazeira, que ainda está lá, forte e firme, guardando também comigo a lembrança dela, de nossas brincadeiras...
Voltávamos para casa pelo mesmo caminho, deixava-a na frente da casa e vinha todo contente à minha. Depois do almoço ela vinha em casa, senão eu ia lá à dela.
Clarice no outro dia, logo após a mordida, foi em casa. Estava envergonhado da mordida, não por eu ter se deixado ferir, era o cômico lugarzinho que aquela besta mitológica escolhera para me morder. __ Ela veio... Disse meu pai entrando no meu quarto. __Ela! Quem? Fingindo não saber de quem se tratava... __ Ela moleque! Quem mais? Vá recebê-la coitadinha. Parece que temos um herói! Dizia-me com um ar de ironia que me lembro muito bem. Levantei meu corpinho abatido e meu bumbum ferido, doía muito, estava manco. __ Que vergonha! Dizia comigo. Ela estava lá, com o seu mais bonito vestidinho, branco como o algodão; cabelo prendido com uma tiara ornada com uma linda flor. Sentada num banco, suas perninhas balançavam na altura do assento, cortando o ar. Usava um sapatinho preto com uma meia de renda que ia dar nos joelhos. Ao me ver baixou a cabeça, fincou seus olhos no chão batido, como a contar formiguinhas. Minha mãe gritou alto da cozinha:
__ Querido vão debaixo da laranjeira que tô preparando um suco de maracujá bem gostoso pra nós.
Os olhos dela brilharam. __ Vai ter bolinhos também? Perguntou-me faceira.
__ Não sei Clarice, mas vou ver! Corri até a cozinha em que achei minha mãe colocando uma grande jarra numa bandeja para levar o suco.
__ Mãe! Queremos bolinhos!
__ Não fiz querido.
__ Mas!
__ Nem mas, nem menos, vá logo que já estou indo. Vá, vá, vá...
__Mas mãe!
__Claro que têm filhinho já vou levar seus bolinhos! Rindo para mim... E sai correndo pra perto de Clarice. A achei no balanço. Balançava-se ao pé da laranjeira, fincando seus pezinhos no chão para tomar mais e mais impulso. Ia bem alto. Perto do céu a falar com os pássaros e confiar-lhe seus sonhos de criança. Mancava um pouco. __ Ainda dói? Perguntava-me com um olhar triste. __ Não! Dizia. __ Eu sou homem e homem não sente dor. __ Ah, já tá mentindo né gurizão, aqui está o suco Clarice. __ Não sente dor mesmo mãe. __ Então por que você abriu o berro quando lhe dei uma cosa ontem? Clarice ria e ria.
__ Mãe!
__Calma filho, estou brincando.
__ Viu Clarice!
Tomamos o suco, ela queria brincar, mas se lembrava de que sua mãe pedira para não sujar o vestido. Então brincamos de esconder na frente de casa, eu sempre ia pra árvore tampar o rosto e contar até dez, enquanto ela se escondia. Era uma grande ingazeira, muito cheia de frutos naquela ocasião, e que servia para o nosso suprimento quando cansávamos de brincar. __ Pronto! Já vou! Gritava pra ela.
Clarice sempre se escondia em três lugares, mas fingia não saber, só pra fazer o agrado dela. Fingia que não a via correr para a árvore, corria a trás dela, ela de mim, seu vestido dançava ao sabor do vento, seus cabelos ondulantes também, da ingazeira vinha um cheiro característico. Tudo isso me enchia de uma energia incompreensível, me jogava na graminha, ela também, se esquecia da brancura do vestidinho, brancura? Não, agora se coloria num vermelho muito forte, com as muitas marcas de sua mãozinha. Quando se dera conta, já era tarde. __ Ih! Mamãe vai me bater, olha o vestido, tá todo sujo...
__ Calma que eu não deixo ela te bater! Eu falo pra ela me bater e você não.
__ Não adianta! Ela vai ficar braba comigo, já vou, tchau!
E ia correndo para a casa, e eu ficava a vê-la sumindo na esquina. Já ia mais um dia!
Crescemos e crescemos, ela ficou mais bonita, e dada a me fazer de capacho! Aos catorze anos, ainda não conseguira roubar-lhe um beijo de verdade, mas fazer o quê?
Clarice e eu estávamos mudando, e que mudança, agora além dos friozinhos que me dava ao chegar perto dela, acontecia coisas estranhas, que se eu não disfarçasse, ela acabaria percebendo! Era só eu olhar para ela, para aquele sorriso mudado, mais carnudo, e mais brilhoso, me entorpecia todo, minha pele queimava; meu pai, começava a dizer: __ Como esse menino demora no banheiro! Deve tá fazendo arte!
Mas não adiantava lutar contra aquelas forças, era involuntário... E não era só o sorriso mudado... Não, não era! Seu corpo ficara mais bonito, e mais volumoso em algumas partes, redondinho em outra, até as pernas que eram fininhas, agora, engrossaram, meus olhos não me obedeciam... Clarice, dizia: __ Você, você! Eu sei onde seus olhos caminham! E ria de mim, e eu disfarçava, afundava minha cara no chão! Ela ria, e como ria... Mas era só olhar, com minha cara de sonso, para aquele rostinho pipocado de espinhas, que por sinal lhe fazia mais bonita e diferente, que ela ficava toda vermelhinha! Vermelhinha de vergonha!
Era março, dia vinte. Um dia muito especial, seu aniversário de quinze anos; seu pai, senhor Feliciano, deu uma festa muito bonita, vararia a noite para os que soubessem beber, era uma gritaria só. Clarice estava linda, usava um vestido branco muito lindo; em seu semblante pintava-se um ar de felicidade excepcional, em seus olhos rebrilhavam uma constelação inteira, em seu sorriso um ar de mulher feita; a Clarice criança, ficava então no passado, via uma mulher, embora a idade ainda lhe puxasse para a infância. No entanto, algo parecia mudá-la. Seu pai estava bastante comovido, sua mãe também.
Dançou com seu pai, depois com seu padrinho; ficava a fitá-la, ela então veio até a mim, convidou-me para dançar também, fiquei muito lisonjeado. Dançamos. Pisava no céu, sua cintura fina, sobre as minhas mãos, seu cabelo a roçar minha face, no ritmo da dança, o perfume suave, e seu hálito fresco me entorpecia. Ela estava calada, apenas um sorriso de satisfação cobria sua face corada pelo ruge.
A um momento confiou-me ao ouvido um segredo, que me deixou desnorteado de felicidade; o mundo girava conforme dançávamos...
__ O que? Repita Clarice!
__ Te amo! Murilo...
__ Eu... Eu também Clarice! _ Sussurrei ao seu ouvido.
__ Quero ser sua a vida inteira...
O baile se estendia, estava ficando tarde, Clarice se sentou ao lado de sua mãe que estava conversando com algumas senhoras.
Fui até ela para me despedir, feliz do que ela me confidenciara, seu amor era tudo que eu queria, enfim seria correspondido. Despedi-me. Então sai todo cheio de felicidade, estava já a uma boa distância da casa dela, quando escutei uma voz me chamado aos sussurros, virei para trás, e vi Clarice correndo na minha direção. Ela me abraçou forte, me beijou sofregamente, sentia nossas almas se tocarem e se beijarem também, seus lábios úmidos e sua língua delirante amalgamavam com minha boca sequiosa por aquele tão esperado momento.
Estávamos no meio da rua, um pouco iluminada, corríamos o risco de alguém nos ver; alguns convivas já despontavam ao longe na rua indo para suas casas.
Fomos então para debaixo da ingazeira, o céu estava repleto de estrelas, batia uma refrescante brisa, e o farfalhar da ingazeira compunha uma linda sinfonia para nós dois; ela estava linda toda de branco, parecia um anjo vindo do céu para me fazer conhecer as nuvens, pois o chão não mais existia sob meus pés. Só a ingazeira e as estrelas souberam o que fizemos e como foi bom.
Deitamos cansados na grama, ríamos de loucura que fizemos e das varias maneiras que nos amamos naquele momento, ela me descobrira e eu a ela; olhávamos para o céu estrelado que se desvendava por entre os galhos da frondosa ingazeira; uma coruja piava ao longe, e nós ali, deitados exaustos de tanto nos amarmos, nossos cheiros se espalhavam carregados pela brisa que refrescava os nossos corpos extasiados e nossas faces coradas.
Clarice despediu-se de mim, pois já se fazia muito tarde. Em casa deitado na cama não conseguia esquecer daquele momento, daquele sublime momento, quando escutei vindo da direção de sua casa um barulho que parecia ser de fogos de artifício, estavam ainda em festas, deduzi; dormi, dando por mim somente no outro dia.
Levantei, chamei minha mãe e meu pai, ninguém me respondeu, sai pra fora com meus olhos coagidos pela luz intensa do sol; achei minha mãe e meu pai, um ao lado do outro, com os olhos fustigados, pareciam ter chorado, perguntei a eles o que havia acontecido, mas não me responderam, olharam pra mim, e o silêncio frio que vinha deles acusava algo terrível que havia acontecido. Minha mãe se levantou e vindo na minha direção me abraçou fortemente.
Olhei para ela e disse:
__ Por favor, mãe me conte o que aconteceu.
__ Filho algo terrível aconteceu com uma pessoa que amamos muito, especialmente você.
__ Com quem mãe pelo amor de Deus me conte! Com quem?
__ Ontem aconteceu uma briga na festa da Clarice, alguns homens estavam bêbados e houve uma discussão entre dois deles, então um homem atirou em outro, mas acabou atingindo Clarice...
__ O que mãe? Não pode ser! Como ela está mãe, por favor? Uma dor terrível me dominou o corpo e a alma naquele momento, meus olhos ardiam, pegavam fogo, as lágrimas como se fossem ácidos rasgavam meu rosto...
__ Por favor, mãe, me diz que ela está bem!
Minha mãe me apertou mais forte contra seu peito, então me disse:
__ Ela não agüentou filho...
__ Não! Não!
Fiquei mudo, não conseguia falar, minha língua gelara, engolia soluços amargos, meu peito partia-se em dor tamanha que nunca sentira antes... Vinha-me na cabeça Clarice, seu lindo rosto, seus olhos a me fitarem profundamente.
Não mais sorri por muito tempo; meus pais não me deixaram ir ao enterro, ouvia pelas conversas entre eles que nunca se viu tão forte comoção naquele dia na suas vidas, a cidade morreu para mim, e para os pais daquela menina. A ingazeira chorava comigo sem ninguém saber...
__ Pai! Pai! Por que está chorando papai?
__ Nada minha filha! E sua mãe já acendeu a vela pra vovó?
__ Sim pai! A mãe agora já tá vindo, ela falou pra mim vir aqui com o senhor... Quem é esta menina que tá enterrada aí pai? Ela era tão bonita...
__ É uma pequena princesa minha filha! Minha pequena princesa!
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