Prefácio
“Descaso e um Caso” é um conto que ocupou a minha predileção do conjunto dos contos que tenho escrito. Tento ensaiar neste a exploração psicológica dos personagens assim como a atividade descritiva. Dessa forma, julgo ser ele, na minha perspectica, como um conto ensaístico, umas vez que, a pouco tenho me dedicado à pena, ou melhor dizendo, à tecla.
Autor
Descaso e um Caso
O sol já declinava no horizonte quando se ouviu tocar a campainha. Francine preparava o jantar; seu marido ainda não havia chegado do trabalho.
__ Quem será a essa hora? __ Resmungou, consigo mesma, ao mesmo tempo em que desata o avental e o coloca sobre a mesa. Abriu a porta. Viu a figura de um rapaz na calçada, com uma pequena mala ao seu lado. Como não era muito boa das vistas, franziu a testa para tentar identificá-lo.
__ Quem é? Disse ao desconhecido alteado a voz.
__ Cássio! Respondeu-lhe o rapaz, acenando para ela.
__ O que o senhor deseja?
__ Sou amigo do Estevão.
Pela aparente afinidade que emanara daquelas palavras, ela o convidou a entrar. Cássio trazia uma feição de acanhamento. Não avisara da antecedência de sua chegada, tanto é que, Estevão ainda não tivera a oportunidade de interar a sua esposa que seu amigo, de longa data, viria. Pelo que este tinha marcado, ainda levaria uma semana.
Francine convidou-o a se sentar no sofá. A televisão estava ligada; passava o telejornal. Sentou-se num sofá mais afastado. Estava surpresa com a inesperada visita. Um rapaz que não deveria ter vinte e cinco anos, de estatura mediana, corpo forte. Estava vestido de maneira simples, mas com muito esmero. Pela barba, impecavelmente feita, e pelo corte característico do cabelo via-se, claramente, um tipo militar. Impressão esta, que fora precisamente confirmada, pelo modo com que ele lhe falava e, finalmente, por ele ter dito.
__ Você e meu marido se conhecem há muito tempo? Perguntou Francine querendo saber mais sobre a relação do estranho com Estevão.
__ Sim. Praticamente fomos criados juntos. Morávamos na mesma cidade até o dia em que entrei para o Exército e ele mudou-se para cá.
__ Parece que o destino os aproximou novamente... disse a esposa de Estevão, num tom solene.
__ Então...! Esbarramos juntos de novo. Afinal, onde ele está?
__ Ele ainda não voltou do trabalho; e lembrando-se de que devia preparar o jantar... Fique a vontade... Vou terminar de preparar a janta. Ele já deve estar chegando.
__ Pode ir. Eu não atrapalho.
__ Que isso.
Estevão não demorou a chegar. Ao ver seu amigo sentado no sofá, além da surpresa, sentira também muita alegria.
__ Ora vejam! Seu malandro... Quanto tempo! Exclamou Estevão, se dirigindo até ele, para lhe dar um forte abraço.
__ Desculpe por ter vindo adiantado demais, é que minha transferência foi antecipada. Não tive outra opção, amanhã mesmo devo me apresentar logo cedo.
__ Ah! Sim. Não se preocupe, pode ficar aqui o tempo que quiser, disse Estevão bastante solicito com ele.
__ Não se preocupe. É só o tempo necessário para eu arrumar uma casa boa pra alugar. Prometo que serei rápido... Não quero ser demasiado inconveniente.
__ Que isso rapaz, sua presença é uma alegria imensa; o tempo que tiveres aqui será muito bom; poderemos relembrar do passado e falar sobre o presente e por que não do...
__ Se formos falar de tudo, disse rindo Cássio; creio que deverei ficar aqui um mês, além do mais, precisaríamos de muitos engradados para molhar a goela, afim de que, esta não ressecasse.
Estevão desmanchava-se em gargalhadas. Daí em pouco, foi até a cozinha em que se encontrava sua esposa.
Pensativa e ao mesmo tempo concentrada diante de uma assadeira que trazia um frango muito bem assado, Francine nem esperava que seu marido dirigia-se sorrateiro por trás. Estevão a agarrou pela cintura, beijando sua nuca.
__ Que susto amor! E seu amigo?
__ Então coração. Era para eu ter te avisado, mas ele se adiantou demais.
__ Agente terá que aguentá-lo por quanto tempo bem? Disse Francine, terminando o jantar, e virando-se para Estevão.
__ Calma querida; é só o tempo necessário para que ele arrume uma casa para alugar.
__ Espero que seja rápido porque é chato ter de aturar visitas, não tenho paciência.
Desabotoando a camisa, Estevão falou:
__ Vou tomar um banho e já venho para jantarmos.
Se a inesperada presença de Cássio gerou em um, uma alegria de ter a oportunidade de relembrar o passado; em outro por um estranho desconforto, a presença dele, não foi bem quista. Desconforto, que bem sabiamente, Francine não quis explicar ao seu marido, pois ela mesma se sentia muito mal por senti-lo.
Cássio permanecia na sala, sentado, assistindo TV. Estava muito cansado, desgastado pela viagem, e com muitíssimo sono; não via a hora de se estirar numa cama. Estevão, que ia ao banheiro, ao cruzar pela sala só então percebera que a mala do amigo estava colocada no canto da parede, junto à porta. Esquecera de acomodá-lo. Pensando que este, talvez gostasse de tomar um banho antes de jantar, falou-lhe:
__ Cássio venha comigo e traga suas coisas; vou lhe mostrar seu quarto e se você quiser tomar um banho antes de jantar, pode ficar a vontade.
Cássio o acompanhou. Iria dormir num quarto ao lado do casal. Nele havia apenas um guarda-roupa pequeno, uma cômoda e uma cama de casal. Ficava sempre arrumado, de modo que, era só o ocupante se acomodar como lhe agradasse.
__ Está ótimo caro Estevão, não sentiria em melhor acomodado em nenhum outro lugar. Fique tranquilo. Vou me ajeitar e já vou jantar com vocês.
__ Se quiser tomar um banho, ali fica seu banheiro. Disse Estevão apontando para uma porta que havia à sua frente.
__ É disso que preciso: um bom banho; concluiu Cássio.
__ Então tudo bem! Espero-te à mesa.
__ Logo, logo estarei lá.
Estevão não mudara nada, pensava Cássio enquanto se acomodava em seu quarto, apenas notara um ar mais sério no seu jeito; era os efeitos do casamento pensava. Engordara. Continuava, enquanto tirava sua toalha da mala. Foi até o banheiro para tomar seu banho. “Mas na essência é o mesmo”. Falava em voz baixa. E terminava: (Homem de sorte este! Casara com uma bela mulher) remoendo em seu pensamento estas primeiras impressões sem que nada, de segundas intenções, lhe acometesse à cabeça.
Estevão estava já à mesa junto com sua esposa, quando Cássio, de banho tomado, e mais a vontade, de bermuda e chinelos, veio sentar-se junto deles para jantar. Estevão e ele conversavam bastante com a mesma intensidade com que comiam. Francine permanecia queda, apenas observando-os conversarem. Um não sei o quê lhe retinha as curiosidades e a vontade de falar. Apenas, se lhe perguntavam algo, se colocava na conversa, mas apenas com respostas diretas e objetivas.
Estevão não percebia o incômodo no qual Francine estava mergulhada, estava confusa, e se sentia mal apenas por estar perto de Cássio; cruzar seus olhos aos dele a enchia de pejo.
__ O que está acontecendo comigo? Pensava consigo.
O jantar terminou. Cássio tão logo deu as “boas noites” para o casal e se recolheu.
Mas, antes de pegar no sono, uma impressão não lhe saia da cabeça: que era a forma como que a esposa de seu amigo lhe tratava; além disso, era visível, quase óbvio, um ar de incômodo cobrir a face dela, o que intensificava quando seus olhares se cruzavam. Cássio sentia-se mal por ter estas impressões da parte da mulher de seu melhor amigo; amigo este que lhe recebera de braços abertos, mesmo passados um longo tempo sem se verem. Enfim, tentou sufocar estes pensamentos e procurar logo no outro dia uma casa para alugar.
Já mais adiante, num outro cômodo, mais precisamente no quarto do casal, alguém não conseguia pregar os olhos. Tomada de uma fria sensação de culpa, e arrependimento, Francine tentava entender o que se passava consigo. Abraçada ao marido, tentava também, sufocar seus pensamentos como um assassino, cujas mãos impregnadas com o sangue de sua vítima, esforça-se em limpá-las para omitir o horrendo ato.
O sol já despontara a um par de horas, quando o casal acordou. O relógio não os despertou do sono forte, que os trazia presos na cama. Estevão perdera a hora do trabalho, se bem que isso não o preocupava tanto, já que era ele, dono da loja de peças que tocava no centro da cidade. Mas algo lhe preocupou, Cássio saíra sem tomar café.
__ Deixa disso querido, falou-lhe Francine, e continuando:
__ Que se vire por aí...
Estevão como de costume passava as manhãs e as tardes no seu trabalho. De vez em quando sua esposa lá aparecia para ajudá-lo, mas não que isso fosse realmente preciso, uma vez que ele contava com um ajudante. Ia apenas para escapar, um pouco, de sua rotina doméstica.
Ela não era velha, estava na sublime idade dos vinte e cinco anos, mulher bonita e dona de um coração boníssimo. Nunca fora vaidosa; mesmo casada, esta característica manteve-se inalterada. Porém, algo vinha lhe incomodando deveras. A vida de lar que levava já se mostrava monótona para ela; sem falar na falta de uma espécie de completude, cuja definição nem mesmo ela sabia, ao certo, definir. Estava casada há cinco anos, sem que ainda tivessem um filho, o que tanto desejavam, mas que ainda não se concretizara. No entanto, não podemos atribuir a causa de seus sofrimentos a este fato. Francine padecia de outra coisa, saturação doméstica, e outras mais questões que por hora não convém esclarecer, pois sei que o caro leitor pode muito bem adivinhá-lo. Longe de eu duvidar de você.
Por isso, sempre que podia, procurava se ocupar com atividades diferentes, atividades que suprissem os seus desejos de libertar-se das amarraras do espaço doméstico. Ia ao trabalho de seu marido; cuidava de seu maravilhoso jardim onde as rosas, de variadas cores, lhe enchiam a alma de paz e de um virginal ar de romantismo, tão caro já, ao seu mal-tratado coração; passeava quando folgava, pela praça onde o ambiente mais aberto servia-lhe com um escape mais eficiente, uma vez que se sentia mais livre, até de si mesma.
Gostava quando saia com seu marido nos finais de semana, entretanto isso não era sempre. Francine sentia consumir-se por dentro com estas questões. Calada. Sabia que era inútil dividir isso com Estevão, pois nessas alturas, a solução disso tudo fugia à competência dele.
Fazia um mês que Francine arquitetava e procurava edificar uma importante resolução, o que vinha de encontro com um antigo desejo: se realizar profissionalmente através de um curso superior. Que isso provocaria uma gigantesca alteração na sua vida isso era garantido, mas apenas numa ou noutra parte, pensava consigo. Todavia já era um bom começo, concluía. Queria sair da inércia na qual estava mergulhada e injetar na sua vida um quê de mudança a qual tinha plenos direitos. Por isso, começava a se preparar, embora sem falar ao marido. Pensava em avisá-lo agora que estava decidida e preparada para este desafio.
Pelas manhãs Francine, além de se ocupar com as tarefas diárias, começou a se preparar; estudava para o vestibular que faria já pelo fim do ano. Estava confiante, mesmo porque as coisas entravam na sua cabeça com certa facilidade. O que a ajudava, realmente, era o fato de ter sido sempre uma aluna exemplar, de modo que muitas coisas lhe saltavam à cabeça, como flash ou insight.
Durante esta manhã navegava pela internet, pesquisando sobre o curso que faria. Estava indecisa sobre o que iria fazer; dividida entre dois cursos que sempre lhe tomava os pensamentos: Direito ou Letras. Estava um pouco cansada, faltava-lhe ainda fazer o almoço; e ao pensar nisso lembrara-se de que teria alguém a mais à mesa. Preocupava-se em fazer algo diferente, pois seu marido com certeza iria gostar. Coisa de boa recepção a se dar a alguém, que para ela, não passava de um estranho. Assim ela pensava com seus olhos fincados no ar, e com as mãos alisava seus cabelos. Mas sem querer, vinha-lhe a imagem de Cássio envolta de uma incômoda e inexplicável admiração. __ Mas por quê? Perguntava-se Francine, olhando para o relógio que lhe dava alguns generosos minutos de cochilo. Pensava no marido...
Estevão era um homem sério. Homem de pouquíssimos amigos, talvez nem os tivesse de verdade, já que nunca tivera algum que viesse a sua casa, ou de quem ele pudesse ir. Tratava sua mulher com um respeito inquestionável, sempre zeloso para com ela. Achava-lhe a perfeição em forma de uma bela mulher. Às vezes, se perguntava o que fizera para que ela o quisesse como esposo, pois não se via e realmente não era nenhum tipo galã. Mas é claro que, se antes ele não era tal, depois de casado os reflexos de uma vida que se lhe mostrava aparentemente estável, deixou-lhe um pouco a vontade demais, de modo que havia deixado o bom e recomendável hábito de praticar exercícios, e de se cuidar mais em outros e importantes aspectos. A verdade é que o Estevão de antes não era o mesmo do que se via agora. O que isso influenciaria na sua vida a essas alturas? Muito. A vida sempre encontra nas circunstâncias a possibilidade de alterar, o que muitas vezes, pensamos ser inalterável. Tudo começa por onde ninguém pode perceber (apenas nós mesmos) a não ser quando se manifesta em ações: o pensamento.
Isso acontece com todos, peremptoriamente, até mesmo diariamente. Na grande maioria dos casos não passa de uma singela chama que nunca se alastrará, noutras se mostra como uma fulgurante chama, mas que não passa do dito “fogo de palha”. No entanto, há casos em que os efeitos podem ser duradouros e vitalícios, mudando o que nunca se pensou que mudaria.
O certo é que os pensamentos de Francine começavam a tender por este caminho, mas que ainda se mostrava como uma minúscula faísca ante o aparente nada.
Despertada pelo barulho estridente do seu despertador, após alguns curtos minutos de sono, Francine se pôs a preparar o almoço. Fizera-o com um quê de capricho que ela mesma estranhara. Enquanto o fazia, cantava junto com o rádio as músicas mais românticas que este tocava. Sentia-se inexplicavelmente feliz, uma felicidade estranha a ela, não à que estava habituada a sentir. Aprontado o almoço ela resolveu tomar um banho. Neste tão rotineiro hábito, não que fosse rigorosamente nessa hora tomado, igualmente, parecia ser diferente. Ficara debaixo do chuveiro por um bom tempo, a água que descia sobre seu corpo parecia-lhe acariciá-la voluptuosamente. Olhava-o como que dizendo consigo mesma: “Sou tão bonita!” parecia que se desvendava após longo tempo de desconhecimento de si mesma. Após o banho, preocupo-se em passar em seu corpo um cheiroso óleo hidratante, de modo que o ar ficava impregnado de uma irresistível fragrância de rosas. Tirara de seu guarda-roupa um singelo vestido, que muito gostava, e que a muito não usava. Não era da moda, porém lhe caia perfeitamente. Dava nos joelhos, e possuía um casto decote que mesmo coagindo a beleza de seus seios firmes e empinados, e mesmo negando-lhes o ar e as vistas, não lhe escondia a bela perfeição que o tempo ainda nem pensava em ceifar.
Surpreendentemente para quem a conhecia bem, como seu marido, não se preocupou em amarrar seus cabelos, trazendo-os soltos e ainda umedecidos. Por fim, corou levemente seus lábios. Quando assim o fazia, olhando-se no espelho, se deu conta do por que estar procedendo daquela forma, que para ela era tão incomum. Pensava no seu marido. Forçava-se em não pensar em mais ninguém. __ Será que ele estranharia? Pensava consigo mesma. Tomada de um impulso de desfazer o que fizera, tentou prender os cabelos e tirar o vestido, ao mesmo tempo em que ia limpar os lábios. Mas parou...:
__ Farei isso por mim... E, hesitando... E por ele... Por certo irá gostar. Desistindo de mudar o que fazia.
Enquanto estava mergulhada em si, ouviu um rumor de passos pela sala. __ Meu marido! Ao sair do quarto topou no corredor com Cássio. Ficou assustada e sem jeito. Sem parar cruzou por ele apenas cumprimentando-o:
__ Bom dia Cássio. Este, surpreso com aquela mulher que aparecera à sua frente tão diferente da que vira a noite passada, o deixou bastante admirado.
É inegável que um e outro, deixaram um para o outro mais que algumas simples impressões. Francine não o reconhecia; de farda, muito bem alinhado, via nele um homem que jamais deveria estar ali, pois a desviava involuntariamente da sua verdadeira condição de mulher casada. Uma vaga ideia de ser mulher de Cássio pairava neste momento na sua cabeça; e aquela topada que houve, representava na sua imaginação como a chegada dele, como um esposo, a sua casa. Faltava-lhe um beijo carinhoso de recepção que ela com certeza o daria; assim que o visse. Por outro lado, como lho disse, Cássio não pode deixar de se impressionar com Francine quando a vira; e nem pode deixar de sentir o perfume envolvente que ela deixara ao cruzar por ele.
Agora, um desejo de possuí-la abatia-lhe a cabeça. No entanto isso apenas não passava de simples e secretos desejos, encobertos por uma fértil admiração por ela. A questão é que os dois estavam sendo vítimas do acaso; acaso que estava tendo uma ajudinha de outras decisivas circunstâncias.
Estevão chegou logo depois, com a feição cansada, passando por sua esposa que estava sentada no sofá; mal a olhando disse:
__ Olá amor! Entrou no quarto e preparava-se para tomar um banho. Francine olhava para si, indagava-se... “Como não reparou nada?” Mas, enfim deixou pra lá tais observações, preocupando-se em preparar a mesa. Cássio não aparecia, por certo estava cochilando pensava. Seus pensamentos regulavam, nestes momentos, todas as possíveis ações de que poderia necessitar fazer para bem das tarefas de que lhe incumbia como dona de casa. Preparada a mesa, voltou a se sentar no sofá. Passava o tempo. Queria se libertar daquela hora. Deseja seu tempo, estudaria, leria uma revista, passearia logo que todos estivessem fora, no trabalho... Olhava para suas mãos, de repente notara como que acordada de um profundo coma, de que há tempos que não ia à manicure, suas mãos tão pequeninas traziam suas unhas tão virgens de um toque de trato profissional; logo aspirava em ir ao cabeleireiro fazer uma escova que há tempos também não fazia... Uma vaidade sem pecados parecia dominar-lhe o espírito. __ Irei logo depois do almoço! Pensou soltando um leve sorriso.
Estevão veio logo. Olhando para Francine que ainda se achava sentada disse-lhe:
___ Querida vamos almoçar que estou com uma fome que Deus me livre!
Ela se levantou, ficando de frente para ele, como que quisesse que ele percebesse o que fizera, e com isso esperando um elogio. Em vão ela assim fizera, pois Estevão tão rapidamente a chamou para acompanhá-lo na direção da mesa foi logo se sentar. Ela tomada de um impulso sincrético acompanhou-o, sentando ao seu lado. Esperavam por Cássio, Estevão o tinha chamado antes de vir até a sala. Ele logo chegou. Vinha fardado, o que chamou a atenção de Estevão... Este assim que o avistou disse-lhe:
__ Por que está fardado Cássio?
__ Terei que ir cedo ao quartel, são coisas desta profissão... Não somos dono do nosso tempo, mesmo nas horas ditas de folga...
__ Que coisa né! Exclamou Estevão, e logo concluindo:
__ Eu que jamais me meteria numa boca dessas. Eu que tenho tempo livre para chegar ou sair do meu trabalho, às vezes, sinto que vou morrer de desgasto de tanto trabalhar...
Francine mantinha-se queda, sentia um frio descer sobre sua espinha assim que Cássio sentou-se à sua frente. O perfume que sentira, e aquela visão, que discretíssima via, enchiam-lhe de uma sensação desconfortante, ainda mais estando ao lado de seu marido. Tudo era diferente: o perfume, o modo de se sentar, de levar a colher à boca, de sorrir, etc.
Cássio ao experimentar a comida tão logo se dirigiu a Francine elogiando-a:
__ Sua comida é divina dona Francine! Esta, engolindo as palavras apenas respondeu:
__ Que isso... Olhando-o rapidamente e com um nítido sorriso de contentamento na face.
Estevão cheio de si, logo disse:
__ Ela é uma jóia, uma excelente esposa...
Estas palavras soaram infelizes para ela, sorria neste momento disfarçando uma tristeza aguda. A expressão “excelente esposa” maquinalmente dita por Estevão ecoava nos pensamentos dela, como que para ele ser uma excelente esposa resumisse tão somente nas habilidades de se preparar uma comida, ou mesmo em arrumar a casa... E neste momento, pensava no que fizera logo antes, no vestido, nos cabelos que ela trazia vaidosamente soltos... Por fim, no desejo de fazer uma faculdade... Sentia a cada momento ainda mais vontade de se libertar de si mesma, do seu micro espaço no qual estava inertemente mergulhada.
À tarde Francine foi até a casa de sua mãe. Distava pouco de sua casa. Sua mãe era uma senhora demasiadamente boa, adorava ter a companhia de sua filha, já que Francine era a única que morava na mesma cidade, sendo que os demais residiam em outras.
Francine confiara a ela suas aspirações, porém agora lhe trazia uma nova confidência. Sua mãe somente ouvia-lhe as palavras que lhe traziam preocupações.
___ Como filha que você pode estar sentido isto por ele?
___ Não sei mãe... é involuntário! Recostando sua cabeça no colo de sua mãe; enquanto esta meneava a cabeça preocupadíssima.
___ Você sabe que isto pode destruir tudo que você construiu minha filha...
___ O que mãe que eu construí? Me diga! Se dedico a vida toda para ele e para aquela casa... Sofro calada; a vida que venho tendo parece me sufocar a cada dia que passa.
__ Filha, a vida é assim querida... Você precisa se ocupar... E sua faculdade?
__ Eu sei mãe, mas parece que falta mais... Mais do que apenas ocupar-me com outras tarefas.
___ Você não ama mais o Estevão não é?
Francine calada, não respondeu... Engoliu a mais óbvia das respostas, que sua mãe já começava entender.
Não é mais preciso falar sobre o que poderia estar acontecendo com ela. Quanto ao Cássio, as impressões causadas por ter conhecido Francine apenas motivou-lhe uma vontade que não era suficiente para que ele tomasse a resolução de conquistá-la, pois ele não desejava isso para seu amigo.
Estevão não conseguia enxergar o que estava a um palmo de seu nariz. E essa falta de atenção, que poderia ser classificada até como um descaso, estava tirando dele alguém que ele tanto estimava. Infelizmente, sua forma de valorizá-la não era a que Francine tanto desejava. Seria errôneo classificarmos esta carência como mero capricho, pois todo ser humano precisa atender necessidades, às vezes demasiadas simples, e que não raro são lhe privadas. Erra o leitor se pensares que estes anseios são simples desculpas para disfarçar alguma sem-vergonhice. Pois, não estamos falando nesse caso, de desejos libidinosos a serem realizados e posteriormente extinguidos, não, mas sim de um amor que parecia florescer num peito e que até então não passava disso. E como dar vazão a isto? Conversar com sua mãe foi uma boa alternativa, no entanto, tal terapia tinha a falácia no tempo que perduravam seus efeitos, não passando de poucos instantes, tão somente o tempo que durava a conversa.
O certo é que seu coração estava propenso a ser ocupado por um novo amor, a vinda de Cássio somente veio confirmar esta situação.
O inevitável aconteceu. Certa noite abateu em Francine uma forte sede que a forçou a se levantar. Ia à cozinha beber um copo d’água quando deu uma trombada com Cássio. Este vinha do quartel. Ficara de serviço até altas horas. Francine vestia um pijama de seda finíssimo. Por baixo seu corpo virginalmente despido dava-lhe uma fresquidão deliciosa. Tomados de susto, colados um no peito do outro, ficaram por alguns instantes inertes. Cássio segurou-lhe pela nuca e a beijou vorazmente. Ela não impôs a menor resistência. Prensada sobre a parede ela sufocava seus gemidos para não despertar quem dormia tranquilamente, após um dia como outro qualquer.
Francine ficara quase uma semana sem poder olhar nos olhos de Cássio, se sentia envergonhada e ao mesmo tempo sentia uma espécie de raiva do rapaz, que viera para abalar seu casamento. No entanto, aos poucos foi entendendo melhor o que a motivara fazer tal ato. Os dias foram se passando e Cássio enfim arranjara um lugar para morar, querera tanto ter algumas poucas palavras com Francine mas ela se esquivava e evitava entrar em seu caminho e de seus olhos.
Mesmo assim o caso de seu casamento já esfacelado não foi longe; numa sábado cedo Estevão amanhecera deitado sozinho; o guarda-roupa estava aberto e sem um só baby-doll de sua tão passível e dedicada amada.
Francine foi morar com sua mãe e por toda lei não queria ver seu marido; ao saber do ocorrido por intermédio de Estevão, Cássio procurou certa noite Francine, este do mesmo jeito que aparecera inesperadamente para Francine na porta de sua antiga casa, assim fizera novamente na casa da mãe dela. Trazia consigo uma rosa vermelha nas mãos e assim que ela o avistou Cássio a chamou. Ela foi em sua direção lentamente, e receosa se deveria falar ou não com ele; quando se deu conta estavam frente a frente. Cássio sorrindo para ela disse:
__ Você é minha agora! deu-lhe o rosa e depois a beijou por um longo tempo. A fresquidão da noite contrastava com a pele arrepiada de Francine diante daquelas palavras e daquele beijo tão inesperado como a vinda de Cássio.
Encontraram-se, mesmo Francine já desempedida, escondidos por cerca de seis meses; espaço de tempo este, que durou para que Cássio muda-se, a seu pedido, para um outro Estado, Francine e Cássio então foram para bem longe, ela se reencontrou e ele a encontrou.
FIM
Oficina do Conto
Oficina do Conto
sábado, 2 de abril de 2011
Pardal
Pardal
Cedo aproveitava a fresca da manhã e punha-se no telhado. Manso e preguiçoso lambia monotonamente seus pelos. Vez em quando bocejava sôfrego vergando sua espinha dorsal.
Como era de costume d. Ângela preparava-lhe a sua tigelinha de leite; este chegava lesto, esfregando-se, ronronando, perfazendo um oito por entre as pernas de sua amável dona como a agradecer felinamente a quem lhe tratava tão bem. Colocava-se então a lamber nobremente o leite com aquela cara de nojo que não é de nojo, típica de sua espécie.
Pardal era tão acinzentado quanto um céu carregado; céu de chuva por cair. Tinha uns olhos azuis à galã perturbador de corações de donzelinhas.
Ele saía durante o resto do dia voltando tão logo o sol começava a declinar.
Mas foi num domingo gordo e fatídico que Pardal ao voltar para casa não achou mais sua dona, ao invés, um grupo de gente estranha. Alguns maldizendo a finada, outros com ar de mofa, sibilando, a fazer inveja às cobras, dizeres de mau gosto.
Ah! Se nosso animal não fosse tal! Com certeza ele ouviria alguns poucos parentes de d. Ângela discutindo, inventariando, os poucos que a velha viúva e sem filhos deixara. Subiam e desciam; abriam portas, guarda-roupas. Caçando, farejando qualquer objeto de valor... Quais saqueadores de caminhão, que mesmo estando o motorista esvaindo-se, clamando por socorro, a expirar ou mesmo morto, arrasta toda a carga, repartindo, escondendo, tudo o que fosse de valor.
¬¬¬_ A velha deveria possuir algum cofre! _ disse um. Assim todos começaram a procurar. Reviravam o que podiam. Não havia canto sem ser inspecionado, bule sem ser levantado, quadro sem ser tirado do lugar.
Na sala, pois, atrás de um quadro que trazia a foto de d. Ângela com seu Pardal ao colo, acharam um cofre. Não estava trancado; acharam nele algumas poucas economias, que tão logo fora avaliada e devidamente repartida.
Pardal observava atento como a mirar um passarinho, escondido e inerte, somente vibrando sua calda que parecia epilética. Deu a volta por trás da casa, entrando pela janela da cozinha. Cheirou sua tigela vazia, ronronou um ronronar diferente, mais pausado. Quando de súbito entrou uma senhora, esposa de um parente de d. Ângela. O animal ouriçou-se, vergando-se qual um arco-íris, mas um arco-íris cinza. Seus dentes à mostra impunham autoridade e medo.
_ Ah! _ grita a mulher. Apavorada, chama seu marido. Este vem rápido:
_ O que foi?
_ Um gato raivoso...
O homem responde contrariado:
_ Tanto escândalo por um gato! Cadê a fera? _ diz sarcasticamente...
_ Entrou no armário!
O homem procura algo para assustar o animal. Olha para os lados, vê a tigela de louça, com a inscrição “Pardal”. Abre lentamente a porta que se achava entreaberta. O gato de um salto pula na cara do invasor, arranhando-a. Este cai, esbarrando antes numa mesa. A tigela se espatifa no chão. O animal se safa pelo mesmo lugar que entrara; sobe no telhado, astuto e ao mesmo tempo sereno. Saíram já à noite. Silenciosos. Disfarçando algumas sacolas. Pardal miava um miado tenebroso. Olharam sobre o teto a figura do animal olhando-os. O animal soberano no telhado tinha uns olhos vermelhos pelo efeito do luar.
Cedo aproveitava a fresca da manhã e punha-se no telhado. Manso e preguiçoso lambia monotonamente seus pelos. Vez em quando bocejava sôfrego vergando sua espinha dorsal.
Como era de costume d. Ângela preparava-lhe a sua tigelinha de leite; este chegava lesto, esfregando-se, ronronando, perfazendo um oito por entre as pernas de sua amável dona como a agradecer felinamente a quem lhe tratava tão bem. Colocava-se então a lamber nobremente o leite com aquela cara de nojo que não é de nojo, típica de sua espécie.
Pardal era tão acinzentado quanto um céu carregado; céu de chuva por cair. Tinha uns olhos azuis à galã perturbador de corações de donzelinhas.
Ele saía durante o resto do dia voltando tão logo o sol começava a declinar.
Mas foi num domingo gordo e fatídico que Pardal ao voltar para casa não achou mais sua dona, ao invés, um grupo de gente estranha. Alguns maldizendo a finada, outros com ar de mofa, sibilando, a fazer inveja às cobras, dizeres de mau gosto.
Ah! Se nosso animal não fosse tal! Com certeza ele ouviria alguns poucos parentes de d. Ângela discutindo, inventariando, os poucos que a velha viúva e sem filhos deixara. Subiam e desciam; abriam portas, guarda-roupas. Caçando, farejando qualquer objeto de valor... Quais saqueadores de caminhão, que mesmo estando o motorista esvaindo-se, clamando por socorro, a expirar ou mesmo morto, arrasta toda a carga, repartindo, escondendo, tudo o que fosse de valor.
¬¬¬_ A velha deveria possuir algum cofre! _ disse um. Assim todos começaram a procurar. Reviravam o que podiam. Não havia canto sem ser inspecionado, bule sem ser levantado, quadro sem ser tirado do lugar.
Na sala, pois, atrás de um quadro que trazia a foto de d. Ângela com seu Pardal ao colo, acharam um cofre. Não estava trancado; acharam nele algumas poucas economias, que tão logo fora avaliada e devidamente repartida.
Pardal observava atento como a mirar um passarinho, escondido e inerte, somente vibrando sua calda que parecia epilética. Deu a volta por trás da casa, entrando pela janela da cozinha. Cheirou sua tigela vazia, ronronou um ronronar diferente, mais pausado. Quando de súbito entrou uma senhora, esposa de um parente de d. Ângela. O animal ouriçou-se, vergando-se qual um arco-íris, mas um arco-íris cinza. Seus dentes à mostra impunham autoridade e medo.
_ Ah! _ grita a mulher. Apavorada, chama seu marido. Este vem rápido:
_ O que foi?
_ Um gato raivoso...
O homem responde contrariado:
_ Tanto escândalo por um gato! Cadê a fera? _ diz sarcasticamente...
_ Entrou no armário!
O homem procura algo para assustar o animal. Olha para os lados, vê a tigela de louça, com a inscrição “Pardal”. Abre lentamente a porta que se achava entreaberta. O gato de um salto pula na cara do invasor, arranhando-a. Este cai, esbarrando antes numa mesa. A tigela se espatifa no chão. O animal se safa pelo mesmo lugar que entrara; sobe no telhado, astuto e ao mesmo tempo sereno. Saíram já à noite. Silenciosos. Disfarçando algumas sacolas. Pardal miava um miado tenebroso. Olharam sobre o teto a figura do animal olhando-os. O animal soberano no telhado tinha uns olhos vermelhos pelo efeito do luar.
segunda-feira, 28 de março de 2011
Jornal de Poesia - Editor: Soares Feitosa
"Primeiro susto: uma goiaba grávida de bicho." Marcelo Benini
sábado, 26 de março de 2011
Pensamento
"Eis que o homem se perde em si mesmo,
Na sua própria e obscura mente.
Labirinto profundo
E no fundo,
Afundando com ele,
Acha-se o mundo,
Todo imundo..."
Na sua própria e obscura mente.
Labirinto profundo
E no fundo,
Afundando com ele,
Acha-se o mundo,
Todo imundo..."
A casca de banana
Conto
A casca de banana
Descendo a Rua da Conceição, perto do centro, havia uma quitanda muito procurada pelas pessoas por trazer afamados produtos fresquinhos das chácaras do arrabalde. Ali, como em toda decente quitanda achavam-se abóboras e abobrinhas, verduras, mandioca, frutas, etc. Tudo da sua melhor qualidade.
Pela manhã principalmente, era um ponto de confluência de donas de casa ávidas por adquirirem os melhores e mais frescos produtos da terra. De um lado ouvi-se dizer:
_ Mandioca boa!
E do outro:
_ Olha o alface, salsinha...
Mas, eis que um grito irrompe de um lugar indeterminado...
_ Ah!
E logo em seguida:
_ Ai, ai, ai, meu Deus ai...
Por um segundo a quitanda se cala... Silêncio interrompido por reações de espanto e surpresa:
_ O que foi isso meu Deus?!
_ Alguém foi atropelado?
Nesse instante, pescoços se esticam; olhares se desviam buscando além de algumas senhoras ao redor de alguém.
“Que horror!” diz uma senhora com cara de ameixa em conserva. Estendendo suas mãos trêmulas e débeis tenta re-erguer outra senhora de quase igual feição. Inutilmente tentara, uma vez que por certo a infeliz acidentada haveria de ter fraturado ou quebrado algum osso. E tão logo impedida por um mais sabido: “Não podemos mexer nela porque podemos machucá-la mais, vou procurar ajuda.”
Ao lado um garoto curioso com muito esforço irrompeu entre as saias e sacolas.
Jeito esperto e assaz traquina. Fartava-se com uma banana a qual interrompera para atender àquele grito, guiado pela característica irresistível e perdoável de curiosidade infantil diante de um fato curioso. Ao ver a senhora estirada ao chão rogando por um médico, achou aquilo espantoso. Saciada a curiosidade, mas não a vontade de ainda estar ali observando, continuou mastigando o resto de banana ainda não devidamente processado e apreciado para então ser satisfatoriamente engolido. Trazia consigo uma penca de oito bananas. Oito não... Seis! Pois se podiam ver dois pontos vazios que pelo que estava em sua mão sendo já apreciada podia-se concluir que a outra que faltava já teria sido muito bem aproveitada por ele.
Mas o leitor deve estar se perguntando da importância que estou dando para o gosto do menino por esta fruta, amarelinha cor de ouro, a nossa tropicalíssima banana; que por sinal é uma das minhas prediletas. O caso é que não me sai da cabeça a cara de susto e de surpresa que fez o garoto escorregar por entre as saias e sacolas, quitanda a fora, quando viu a senhora sendo levantada pelos lestos e competentes homens do corpo de bombeiros, e ter visto uma casca de banana nanica emplastada no bumbum da coitada da senhora.
Arnaldo Brites Filho
A casca de banana
Descendo a Rua da Conceição, perto do centro, havia uma quitanda muito procurada pelas pessoas por trazer afamados produtos fresquinhos das chácaras do arrabalde. Ali, como em toda decente quitanda achavam-se abóboras e abobrinhas, verduras, mandioca, frutas, etc. Tudo da sua melhor qualidade.
Pela manhã principalmente, era um ponto de confluência de donas de casa ávidas por adquirirem os melhores e mais frescos produtos da terra. De um lado ouvi-se dizer:
_ Mandioca boa!
E do outro:
_ Olha o alface, salsinha...
Mas, eis que um grito irrompe de um lugar indeterminado...
_ Ah!
E logo em seguida:
_ Ai, ai, ai, meu Deus ai...
Por um segundo a quitanda se cala... Silêncio interrompido por reações de espanto e surpresa:
_ O que foi isso meu Deus?!
_ Alguém foi atropelado?
Nesse instante, pescoços se esticam; olhares se desviam buscando além de algumas senhoras ao redor de alguém.
“Que horror!” diz uma senhora com cara de ameixa em conserva. Estendendo suas mãos trêmulas e débeis tenta re-erguer outra senhora de quase igual feição. Inutilmente tentara, uma vez que por certo a infeliz acidentada haveria de ter fraturado ou quebrado algum osso. E tão logo impedida por um mais sabido: “Não podemos mexer nela porque podemos machucá-la mais, vou procurar ajuda.”
Ao lado um garoto curioso com muito esforço irrompeu entre as saias e sacolas.
Jeito esperto e assaz traquina. Fartava-se com uma banana a qual interrompera para atender àquele grito, guiado pela característica irresistível e perdoável de curiosidade infantil diante de um fato curioso. Ao ver a senhora estirada ao chão rogando por um médico, achou aquilo espantoso. Saciada a curiosidade, mas não a vontade de ainda estar ali observando, continuou mastigando o resto de banana ainda não devidamente processado e apreciado para então ser satisfatoriamente engolido. Trazia consigo uma penca de oito bananas. Oito não... Seis! Pois se podiam ver dois pontos vazios que pelo que estava em sua mão sendo já apreciada podia-se concluir que a outra que faltava já teria sido muito bem aproveitada por ele.
Mas o leitor deve estar se perguntando da importância que estou dando para o gosto do menino por esta fruta, amarelinha cor de ouro, a nossa tropicalíssima banana; que por sinal é uma das minhas prediletas. O caso é que não me sai da cabeça a cara de susto e de surpresa que fez o garoto escorregar por entre as saias e sacolas, quitanda a fora, quando viu a senhora sendo levantada pelos lestos e competentes homens do corpo de bombeiros, e ter visto uma casca de banana nanica emplastada no bumbum da coitada da senhora.
Arnaldo Brites Filho
segunda-feira, 18 de janeiro de 2010
Clarice
por
Arnaldo Brites Filho
Apresentação
Clarice nasceu assim, como o sol entrando manso por entre uma janela, tomando o espaço e se fazendo presente. Peço que não me culpem pelo destino desta menina, pois ela traçou sem querer, e contra minha vontade, um trágico caminho; como vocês saberão ao virarem estas poucas páginas.
Mas, caro leitor, Murilo ainda carrega no lugar mais secreto e inviolado do seu coração o amor por esta menina, (menina porque ela não tivera a graça ou quem sabe o azar de chegar à fase pós-adolescência) pelo menos, assim ele me afiançou o que creio muito, dado nossa íntima amizade.
Só sei que no dia de finados não me esqueço desta menina, além do que, é neste dia que um incômodo encargo de consciência teima em atribuir a mim a triste sina que esta menina teve.
ABF
Dia de finados, num cemitério mais além da cidade, um homem que aparentava ter uns trinta e poucos anos, feição cansada e triste, rezava ante um pequeno túmulo. Mais adiante sua esposa acendia algumas velas, quem sabe, para alguns parentes já falecidos que repousavam naquele local; acompanhada de sua filha, Clara, que grudada à sua saia não pensava em ficar um metro longe dela.
O que será que se passava na cabeça daquele senhor? Pois já faz mais de meia hora que está ali, parado, com os olhos fitos na foto de uma pequena moça na lápide, de sorriso tão cheio de vida e um olhar tão alegre como que de um anjo.
Espere!
Acho que estou escutando seu coração falar! É o eco mais doce e triste que já ouvi... Está ficando mais claro, escutemos este sopro que vem de seu peito, do fio mais íntimo e secreto das recordações daquele homem, e busquemos entendê-lo e conhecê-lo melhor, silêncio...
E escutemos...
Clarice, menina travessa que morava na rua de cima, perto da mercearia do Turco, gostava de passar todo dia em frente de casa pra me provocar. Ela sabia que eu gostava dela, e sentia muito gosto de me judiar o coração por eu estar sempre de boca aberta para o seu lado. Mas, o que ela não conseguia disfarçar, mesmo a contra gosto, que também gostava de mim. Virava a cara. Disfarçava. Seu ego não consentia que seu coração dominasse sua linda pessoa, era cabeça dura, dura feito pedra. E que “pedra no meio do meu caminho”, e no meio do coração dela! Puro dengo! Talvez...?
Seu pai tinha uma chácara no extremo da cidade, lá ele ia todas as manhãs para cuidar de tirar o leite, e vir cedo para dar a sua bela filha. Ah! Se eu que fosse fazer isso! Iria com o maior prazer todos os dias, não cobraria nada. Vinha correndo pra casa dela, e diria que tudo mais que ela quisesse eu faria; até ir ter com o pai dela, embora tivesse cara de bravo e eu quase nove, eu ia! Ia mesmo! Então ela saberia que tinha muito amor por ela; ela seria minha esposa e como tal, eu seria para ela um marido, mas não um marido comum, um marido que deitaria, nos dias de chuva, se fosse preciso, na poça d’água, para ela não molhar seus delicados pés de boneca cara.
Clarice um dia me disse, que, se eu não contasse pra ninguém ganharia um beijo, fiquei pensando naquilo por dias, esperando a vontade dela. Ela novamente brincara comigo, mas não liguei, gostava de ser para ela, o bobinho da corte do seu reino. É! Do reino dela! Claro! Porque Clarice é princesa, princesa tão bela, que todos os dias da janela, tirava seu lindo rosto, tão bonito como o sol daquelas fagueiras manhãs, só pra me provocar, porque sabia que eu ficaria, da minha casa, a babar, feito gato ao pé da cozinheira que martela o rubro bife! Suculento, mas, que tem o triste fado de não o pertencer! Porém, ao contrário do destino do gato, eu pressentia que aquele bifinho, ou melhor! Aquele filezinho seria meu algum dia! Ah seria!
Seu rosto belo trazia uns olhos mais belos ainda; belos como as rosas dos vasinhos, na beirada da janela, olhos que disfarçavam querer ver o céu, a roseira na frente, “mas não a mim!” Sei! Ela queria é que eu a visse! Que eu ficasse a babar de amor... Oh! Clarice. Se soubesses que eu sabia desde sempre do seu amor, ai você saberia que belo dengo fazia... Se já não sabia! No entanto, a história não começa aqui, começa desde a nossa mais afastada infância. Ah sim. Nossa infância de quando pra disser a nossa idade, demorava-mos a escolher a quantia dos tenros dedinhos nossos, para assim depois dizer quantos anos tínhamos. Sim, nossa infância foi a melhor das nossas cúmplices. Clarice moça bonita roubara meu coração desde o dia em que a vi. Seria aos seis? Mais antes? Talvez quando ainda éramos anjinhos no céu! De onde voltastes tão rápido... Lembro-me em que num dia heroicamente a defendi de um furibundo animal, travei com ele a mais dantesca das batalhas, resultado...: Uma bela mordida no meu traseiro! Mas valeu a pena; Clarice me disse que desde então eu era o seu herói, seu único herói, e daí ganhei o seu primeiro beijo, e o primeiro de uma menina, como foi doce! Ainda não me deixo de recordar, na recordação da ingenuidade da juventude, daquele beijo mimoso, com que ela me presenteara; fiquei vermelho, nem sentia a dor da mordida do buldogue do vizinho.
__ Isso que dá! Minha mãe disse. Querer sair sozinho pra apanhar manga... E repetia que todo mundo sabia que seu Elias tinha um cão feroz. No entanto nem liguei. Ia com Clarice; por ela eu ia até o fim do mundo, que para nós tinha os limites da quadra... Que beijo doce, embora fosse no rosto! Tinha cheirinho de manga! Por isso toda vez que pego a chupar manga me lembro de Clarice, daquele beijo doce!... Mas apanhei, apanhei feito um coitado. Oh! Raminho doído aquele, ardia... __ Isso que dá querer teimar repetia minha mãe! E meu pai, preocupado com os prováveis efeitos da mordida, monologava... __ Espero que não arruíne! Espero que não arruíne! __ Clarice e eu riamos depois, ela debochava!
__ Que belo lugar pra se levar uma mordida hei?! Então eu lembrava-lhe que o beijo valera a pena! Então ela se corava como do momento que me olhou depois do beijo! Algo me dizia que antes ela já gostava de mim, agora eu tinha certeza!
Ainda me recordo do primeiro dia de escola... Começamos juntos, eu sentava do lado dela. Sua extrema exigência! Desde o primeiro dia. Era um mundo diferente ao que estávamos acostumados. Sempre comentávamos como seria. Quanta criança junta. Olhava pra todos os lados pra ver se não tinha nenhum menino a se meter de bobo com Clarice.
Ela e eu destacávamos; tínhamos os melhores conceitos, se havia uma pintura a fazer, fazíamos sempre juntos. Nosso tema preferido era desenhar nós dois brincando debaixo da ingazeira, da nossa ingazeira, que ainda está lá, forte e firme, guardando também comigo a lembrança dela, de nossas brincadeiras...
Voltávamos para casa pelo mesmo caminho, deixava-a na frente da casa e vinha todo contente à minha. Depois do almoço ela vinha em casa, senão eu ia lá à dela.
Clarice no outro dia, logo após a mordida, foi em casa. Estava envergonhado da mordida, não por eu ter se deixado ferir, era o cômico lugarzinho que aquela besta mitológica escolhera para me morder. __ Ela veio... Disse meu pai entrando no meu quarto. __Ela! Quem? Fingindo não saber de quem se tratava... __ Ela moleque! Quem mais? Vá recebê-la coitadinha. Parece que temos um herói! Dizia-me com um ar de ironia que me lembro muito bem. Levantei meu corpinho abatido e meu bumbum ferido, doía muito, estava manco. __ Que vergonha! Dizia comigo. Ela estava lá, com o seu mais bonito vestidinho, branco como o algodão; cabelo prendido com uma tiara ornada com uma linda flor. Sentada num banco, suas perninhas balançavam na altura do assento, cortando o ar. Usava um sapatinho preto com uma meia de renda que ia dar nos joelhos. Ao me ver baixou a cabeça, fincou seus olhos no chão batido, como a contar formiguinhas. Minha mãe gritou alto da cozinha:
__ Querido vão debaixo da laranjeira que tô preparando um suco de maracujá bem gostoso pra nós.
Os olhos dela brilharam. __ Vai ter bolinhos também? Perguntou-me faceira.
__ Não sei Clarice, mas vou ver! Corri até a cozinha em que achei minha mãe colocando uma grande jarra numa bandeja para levar o suco.
__ Mãe! Queremos bolinhos!
__ Não fiz querido.
__ Mas!
__ Nem mas, nem menos, vá logo que já estou indo. Vá, vá, vá...
__Mas mãe!
__Claro que têm filhinho já vou levar seus bolinhos! Rindo para mim... E sai correndo pra perto de Clarice. A achei no balanço. Balançava-se ao pé da laranjeira, fincando seus pezinhos no chão para tomar mais e mais impulso. Ia bem alto. Perto do céu a falar com os pássaros e confiar-lhe seus sonhos de criança. Mancava um pouco. __ Ainda dói? Perguntava-me com um olhar triste. __ Não! Dizia. __ Eu sou homem e homem não sente dor. __ Ah, já tá mentindo né gurizão, aqui está o suco Clarice. __ Não sente dor mesmo mãe. __ Então por que você abriu o berro quando lhe dei uma cosa ontem? Clarice ria e ria.
__ Mãe!
__Calma filho, estou brincando.
__ Viu Clarice!
Tomamos o suco, ela queria brincar, mas se lembrava de que sua mãe pedira para não sujar o vestido. Então brincamos de esconder na frente de casa, eu sempre ia pra árvore tampar o rosto e contar até dez, enquanto ela se escondia. Era uma grande ingazeira, muito cheia de frutos naquela ocasião, e que servia para o nosso suprimento quando cansávamos de brincar. __ Pronto! Já vou! Gritava pra ela.
Clarice sempre se escondia em três lugares, mas fingia não saber, só pra fazer o agrado dela. Fingia que não a via correr para a árvore, corria a trás dela, ela de mim, seu vestido dançava ao sabor do vento, seus cabelos ondulantes também, da ingazeira vinha um cheiro característico. Tudo isso me enchia de uma energia incompreensível, me jogava na graminha, ela também, se esquecia da brancura do vestidinho, brancura? Não, agora se coloria num vermelho muito forte, com as muitas marcas de sua mãozinha. Quando se dera conta, já era tarde. __ Ih! Mamãe vai me bater, olha o vestido, tá todo sujo...
__ Calma que eu não deixo ela te bater! Eu falo pra ela me bater e você não.
__ Não adianta! Ela vai ficar braba comigo, já vou, tchau!
E ia correndo para a casa, e eu ficava a vê-la sumindo na esquina. Já ia mais um dia!
Crescemos e crescemos, ela ficou mais bonita, e dada a me fazer de capacho! Aos catorze anos, ainda não conseguira roubar-lhe um beijo de verdade, mas fazer o quê?
Clarice e eu estávamos mudando, e que mudança, agora além dos friozinhos que me dava ao chegar perto dela, acontecia coisas estranhas, que se eu não disfarçasse, ela acabaria percebendo! Era só eu olhar para ela, para aquele sorriso mudado, mais carnudo, e mais brilhoso, me entorpecia todo, minha pele queimava; meu pai, começava a dizer: __ Como esse menino demora no banheiro! Deve tá fazendo arte!
Mas não adiantava lutar contra aquelas forças, era involuntário... E não era só o sorriso mudado... Não, não era! Seu corpo ficara mais bonito, e mais volumoso em algumas partes, redondinho em outra, até as pernas que eram fininhas, agora, engrossaram, meus olhos não me obedeciam... Clarice, dizia: __ Você, você! Eu sei onde seus olhos caminham! E ria de mim, e eu disfarçava, afundava minha cara no chão! Ela ria, e como ria... Mas era só olhar, com minha cara de sonso, para aquele rostinho pipocado de espinhas, que por sinal lhe fazia mais bonita e diferente, que ela ficava toda vermelhinha! Vermelhinha de vergonha!
Era março, dia vinte. Um dia muito especial, seu aniversário de quinze anos; seu pai, senhor Feliciano, deu uma festa muito bonita, vararia a noite para os que soubessem beber, era uma gritaria só. Clarice estava linda, usava um vestido branco muito lindo; em seu semblante pintava-se um ar de felicidade excepcional, em seus olhos rebrilhavam uma constelação inteira, em seu sorriso um ar de mulher feita; a Clarice criança, ficava então no passado, via uma mulher, embora a idade ainda lhe puxasse para a infância. No entanto, algo parecia mudá-la. Seu pai estava bastante comovido, sua mãe também.
Dançou com seu pai, depois com seu padrinho; ficava a fitá-la, ela então veio até a mim, convidou-me para dançar também, fiquei muito lisonjeado. Dançamos. Pisava no céu, sua cintura fina, sobre as minhas mãos, seu cabelo a roçar minha face, no ritmo da dança, o perfume suave, e seu hálito fresco me entorpecia. Ela estava calada, apenas um sorriso de satisfação cobria sua face corada pelo ruge.
A um momento confiou-me ao ouvido um segredo, que me deixou desnorteado de felicidade; o mundo girava conforme dançávamos...
__ O que? Repita Clarice!
__ Te amo! Murilo...
__ Eu... Eu também Clarice! _ Sussurrei ao seu ouvido.
__ Quero ser sua a vida inteira...
O baile se estendia, estava ficando tarde, Clarice se sentou ao lado de sua mãe que estava conversando com algumas senhoras.
Fui até ela para me despedir, feliz do que ela me confidenciara, seu amor era tudo que eu queria, enfim seria correspondido. Despedi-me. Então sai todo cheio de felicidade, estava já a uma boa distância da casa dela, quando escutei uma voz me chamado aos sussurros, virei para trás, e vi Clarice correndo na minha direção. Ela me abraçou forte, me beijou sofregamente, sentia nossas almas se tocarem e se beijarem também, seus lábios úmidos e sua língua delirante amalgamavam com minha boca sequiosa por aquele tão esperado momento.
Estávamos no meio da rua, um pouco iluminada, corríamos o risco de alguém nos ver; alguns convivas já despontavam ao longe na rua indo para suas casas.
Fomos então para debaixo da ingazeira, o céu estava repleto de estrelas, batia uma refrescante brisa, e o farfalhar da ingazeira compunha uma linda sinfonia para nós dois; ela estava linda toda de branco, parecia um anjo vindo do céu para me fazer conhecer as nuvens, pois o chão não mais existia sob meus pés. Só a ingazeira e as estrelas souberam o que fizemos e como foi bom.
Deitamos cansados na grama, ríamos de loucura que fizemos e das varias maneiras que nos amamos naquele momento, ela me descobrira e eu a ela; olhávamos para o céu estrelado que se desvendava por entre os galhos da frondosa ingazeira; uma coruja piava ao longe, e nós ali, deitados exaustos de tanto nos amarmos, nossos cheiros se espalhavam carregados pela brisa que refrescava os nossos corpos extasiados e nossas faces coradas.
Clarice despediu-se de mim, pois já se fazia muito tarde. Em casa deitado na cama não conseguia esquecer daquele momento, daquele sublime momento, quando escutei vindo da direção de sua casa um barulho que parecia ser de fogos de artifício, estavam ainda em festas, deduzi; dormi, dando por mim somente no outro dia.
Levantei, chamei minha mãe e meu pai, ninguém me respondeu, sai pra fora com meus olhos coagidos pela luz intensa do sol; achei minha mãe e meu pai, um ao lado do outro, com os olhos fustigados, pareciam ter chorado, perguntei a eles o que havia acontecido, mas não me responderam, olharam pra mim, e o silêncio frio que vinha deles acusava algo terrível que havia acontecido. Minha mãe se levantou e vindo na minha direção me abraçou fortemente.
Olhei para ela e disse:
__ Por favor, mãe me conte o que aconteceu.
__ Filho algo terrível aconteceu com uma pessoa que amamos muito, especialmente você.
__ Com quem mãe pelo amor de Deus me conte! Com quem?
__ Ontem aconteceu uma briga na festa da Clarice, alguns homens estavam bêbados e houve uma discussão entre dois deles, então um homem atirou em outro, mas acabou atingindo Clarice...
__ O que mãe? Não pode ser! Como ela está mãe, por favor? Uma dor terrível me dominou o corpo e a alma naquele momento, meus olhos ardiam, pegavam fogo, as lágrimas como se fossem ácidos rasgavam meu rosto...
__ Por favor, mãe, me diz que ela está bem!
Minha mãe me apertou mais forte contra seu peito, então me disse:
__ Ela não agüentou filho...
__ Não! Não!
Fiquei mudo, não conseguia falar, minha língua gelara, engolia soluços amargos, meu peito partia-se em dor tamanha que nunca sentira antes... Vinha-me na cabeça Clarice, seu lindo rosto, seus olhos a me fitarem profundamente.
Não mais sorri por muito tempo; meus pais não me deixaram ir ao enterro, ouvia pelas conversas entre eles que nunca se viu tão forte comoção naquele dia na suas vidas, a cidade morreu para mim, e para os pais daquela menina. A ingazeira chorava comigo sem ninguém saber...
__ Pai! Pai! Por que está chorando papai?
__ Nada minha filha! E sua mãe já acendeu a vela pra vovó?
__ Sim pai! A mãe agora já tá vindo, ela falou pra mim vir aqui com o senhor... Quem é esta menina que tá enterrada aí pai? Ela era tão bonita...
__ É uma pequena princesa minha filha! Minha pequena princesa!
***
Clarice nasceu assim, como o sol entrando manso por entre uma janela, tomando o espaço e se fazendo presente. Peço que não me culpem pelo destino desta menina, pois ela traçou sem querer, e contra minha vontade, um trágico caminho; como vocês saberão ao virarem estas poucas páginas.
Mas, caro leitor, Murilo ainda carrega no lugar mais secreto e inviolado do seu coração o amor por esta menina, (menina porque ela não tivera a graça ou quem sabe o azar de chegar à fase pós-adolescência) pelo menos, assim ele me afiançou o que creio muito, dado nossa íntima amizade.
Só sei que no dia de finados não me esqueço desta menina, além do que, é neste dia que um incômodo encargo de consciência teima em atribuir a mim a triste sina que esta menina teve.
ABF
Dia de finados, num cemitério mais além da cidade, um homem que aparentava ter uns trinta e poucos anos, feição cansada e triste, rezava ante um pequeno túmulo. Mais adiante sua esposa acendia algumas velas, quem sabe, para alguns parentes já falecidos que repousavam naquele local; acompanhada de sua filha, Clara, que grudada à sua saia não pensava em ficar um metro longe dela.
O que será que se passava na cabeça daquele senhor? Pois já faz mais de meia hora que está ali, parado, com os olhos fitos na foto de uma pequena moça na lápide, de sorriso tão cheio de vida e um olhar tão alegre como que de um anjo.
Espere!
Acho que estou escutando seu coração falar! É o eco mais doce e triste que já ouvi... Está ficando mais claro, escutemos este sopro que vem de seu peito, do fio mais íntimo e secreto das recordações daquele homem, e busquemos entendê-lo e conhecê-lo melhor, silêncio...
E escutemos...
Clarice, menina travessa que morava na rua de cima, perto da mercearia do Turco, gostava de passar todo dia em frente de casa pra me provocar. Ela sabia que eu gostava dela, e sentia muito gosto de me judiar o coração por eu estar sempre de boca aberta para o seu lado. Mas, o que ela não conseguia disfarçar, mesmo a contra gosto, que também gostava de mim. Virava a cara. Disfarçava. Seu ego não consentia que seu coração dominasse sua linda pessoa, era cabeça dura, dura feito pedra. E que “pedra no meio do meu caminho”, e no meio do coração dela! Puro dengo! Talvez...?
Seu pai tinha uma chácara no extremo da cidade, lá ele ia todas as manhãs para cuidar de tirar o leite, e vir cedo para dar a sua bela filha. Ah! Se eu que fosse fazer isso! Iria com o maior prazer todos os dias, não cobraria nada. Vinha correndo pra casa dela, e diria que tudo mais que ela quisesse eu faria; até ir ter com o pai dela, embora tivesse cara de bravo e eu quase nove, eu ia! Ia mesmo! Então ela saberia que tinha muito amor por ela; ela seria minha esposa e como tal, eu seria para ela um marido, mas não um marido comum, um marido que deitaria, nos dias de chuva, se fosse preciso, na poça d’água, para ela não molhar seus delicados pés de boneca cara.
Clarice um dia me disse, que, se eu não contasse pra ninguém ganharia um beijo, fiquei pensando naquilo por dias, esperando a vontade dela. Ela novamente brincara comigo, mas não liguei, gostava de ser para ela, o bobinho da corte do seu reino. É! Do reino dela! Claro! Porque Clarice é princesa, princesa tão bela, que todos os dias da janela, tirava seu lindo rosto, tão bonito como o sol daquelas fagueiras manhãs, só pra me provocar, porque sabia que eu ficaria, da minha casa, a babar, feito gato ao pé da cozinheira que martela o rubro bife! Suculento, mas, que tem o triste fado de não o pertencer! Porém, ao contrário do destino do gato, eu pressentia que aquele bifinho, ou melhor! Aquele filezinho seria meu algum dia! Ah seria!
Seu rosto belo trazia uns olhos mais belos ainda; belos como as rosas dos vasinhos, na beirada da janela, olhos que disfarçavam querer ver o céu, a roseira na frente, “mas não a mim!” Sei! Ela queria é que eu a visse! Que eu ficasse a babar de amor... Oh! Clarice. Se soubesses que eu sabia desde sempre do seu amor, ai você saberia que belo dengo fazia... Se já não sabia! No entanto, a história não começa aqui, começa desde a nossa mais afastada infância. Ah sim. Nossa infância de quando pra disser a nossa idade, demorava-mos a escolher a quantia dos tenros dedinhos nossos, para assim depois dizer quantos anos tínhamos. Sim, nossa infância foi a melhor das nossas cúmplices. Clarice moça bonita roubara meu coração desde o dia em que a vi. Seria aos seis? Mais antes? Talvez quando ainda éramos anjinhos no céu! De onde voltastes tão rápido... Lembro-me em que num dia heroicamente a defendi de um furibundo animal, travei com ele a mais dantesca das batalhas, resultado...: Uma bela mordida no meu traseiro! Mas valeu a pena; Clarice me disse que desde então eu era o seu herói, seu único herói, e daí ganhei o seu primeiro beijo, e o primeiro de uma menina, como foi doce! Ainda não me deixo de recordar, na recordação da ingenuidade da juventude, daquele beijo mimoso, com que ela me presenteara; fiquei vermelho, nem sentia a dor da mordida do buldogue do vizinho.
__ Isso que dá! Minha mãe disse. Querer sair sozinho pra apanhar manga... E repetia que todo mundo sabia que seu Elias tinha um cão feroz. No entanto nem liguei. Ia com Clarice; por ela eu ia até o fim do mundo, que para nós tinha os limites da quadra... Que beijo doce, embora fosse no rosto! Tinha cheirinho de manga! Por isso toda vez que pego a chupar manga me lembro de Clarice, daquele beijo doce!... Mas apanhei, apanhei feito um coitado. Oh! Raminho doído aquele, ardia... __ Isso que dá querer teimar repetia minha mãe! E meu pai, preocupado com os prováveis efeitos da mordida, monologava... __ Espero que não arruíne! Espero que não arruíne! __ Clarice e eu riamos depois, ela debochava!
__ Que belo lugar pra se levar uma mordida hei?! Então eu lembrava-lhe que o beijo valera a pena! Então ela se corava como do momento que me olhou depois do beijo! Algo me dizia que antes ela já gostava de mim, agora eu tinha certeza!
Ainda me recordo do primeiro dia de escola... Começamos juntos, eu sentava do lado dela. Sua extrema exigência! Desde o primeiro dia. Era um mundo diferente ao que estávamos acostumados. Sempre comentávamos como seria. Quanta criança junta. Olhava pra todos os lados pra ver se não tinha nenhum menino a se meter de bobo com Clarice.
Ela e eu destacávamos; tínhamos os melhores conceitos, se havia uma pintura a fazer, fazíamos sempre juntos. Nosso tema preferido era desenhar nós dois brincando debaixo da ingazeira, da nossa ingazeira, que ainda está lá, forte e firme, guardando também comigo a lembrança dela, de nossas brincadeiras...
Voltávamos para casa pelo mesmo caminho, deixava-a na frente da casa e vinha todo contente à minha. Depois do almoço ela vinha em casa, senão eu ia lá à dela.
Clarice no outro dia, logo após a mordida, foi em casa. Estava envergonhado da mordida, não por eu ter se deixado ferir, era o cômico lugarzinho que aquela besta mitológica escolhera para me morder. __ Ela veio... Disse meu pai entrando no meu quarto. __Ela! Quem? Fingindo não saber de quem se tratava... __ Ela moleque! Quem mais? Vá recebê-la coitadinha. Parece que temos um herói! Dizia-me com um ar de ironia que me lembro muito bem. Levantei meu corpinho abatido e meu bumbum ferido, doía muito, estava manco. __ Que vergonha! Dizia comigo. Ela estava lá, com o seu mais bonito vestidinho, branco como o algodão; cabelo prendido com uma tiara ornada com uma linda flor. Sentada num banco, suas perninhas balançavam na altura do assento, cortando o ar. Usava um sapatinho preto com uma meia de renda que ia dar nos joelhos. Ao me ver baixou a cabeça, fincou seus olhos no chão batido, como a contar formiguinhas. Minha mãe gritou alto da cozinha:
__ Querido vão debaixo da laranjeira que tô preparando um suco de maracujá bem gostoso pra nós.
Os olhos dela brilharam. __ Vai ter bolinhos também? Perguntou-me faceira.
__ Não sei Clarice, mas vou ver! Corri até a cozinha em que achei minha mãe colocando uma grande jarra numa bandeja para levar o suco.
__ Mãe! Queremos bolinhos!
__ Não fiz querido.
__ Mas!
__ Nem mas, nem menos, vá logo que já estou indo. Vá, vá, vá...
__Mas mãe!
__Claro que têm filhinho já vou levar seus bolinhos! Rindo para mim... E sai correndo pra perto de Clarice. A achei no balanço. Balançava-se ao pé da laranjeira, fincando seus pezinhos no chão para tomar mais e mais impulso. Ia bem alto. Perto do céu a falar com os pássaros e confiar-lhe seus sonhos de criança. Mancava um pouco. __ Ainda dói? Perguntava-me com um olhar triste. __ Não! Dizia. __ Eu sou homem e homem não sente dor. __ Ah, já tá mentindo né gurizão, aqui está o suco Clarice. __ Não sente dor mesmo mãe. __ Então por que você abriu o berro quando lhe dei uma cosa ontem? Clarice ria e ria.
__ Mãe!
__Calma filho, estou brincando.
__ Viu Clarice!
Tomamos o suco, ela queria brincar, mas se lembrava de que sua mãe pedira para não sujar o vestido. Então brincamos de esconder na frente de casa, eu sempre ia pra árvore tampar o rosto e contar até dez, enquanto ela se escondia. Era uma grande ingazeira, muito cheia de frutos naquela ocasião, e que servia para o nosso suprimento quando cansávamos de brincar. __ Pronto! Já vou! Gritava pra ela.
Clarice sempre se escondia em três lugares, mas fingia não saber, só pra fazer o agrado dela. Fingia que não a via correr para a árvore, corria a trás dela, ela de mim, seu vestido dançava ao sabor do vento, seus cabelos ondulantes também, da ingazeira vinha um cheiro característico. Tudo isso me enchia de uma energia incompreensível, me jogava na graminha, ela também, se esquecia da brancura do vestidinho, brancura? Não, agora se coloria num vermelho muito forte, com as muitas marcas de sua mãozinha. Quando se dera conta, já era tarde. __ Ih! Mamãe vai me bater, olha o vestido, tá todo sujo...
__ Calma que eu não deixo ela te bater! Eu falo pra ela me bater e você não.
__ Não adianta! Ela vai ficar braba comigo, já vou, tchau!
E ia correndo para a casa, e eu ficava a vê-la sumindo na esquina. Já ia mais um dia!
Crescemos e crescemos, ela ficou mais bonita, e dada a me fazer de capacho! Aos catorze anos, ainda não conseguira roubar-lhe um beijo de verdade, mas fazer o quê?
Clarice e eu estávamos mudando, e que mudança, agora além dos friozinhos que me dava ao chegar perto dela, acontecia coisas estranhas, que se eu não disfarçasse, ela acabaria percebendo! Era só eu olhar para ela, para aquele sorriso mudado, mais carnudo, e mais brilhoso, me entorpecia todo, minha pele queimava; meu pai, começava a dizer: __ Como esse menino demora no banheiro! Deve tá fazendo arte!
Mas não adiantava lutar contra aquelas forças, era involuntário... E não era só o sorriso mudado... Não, não era! Seu corpo ficara mais bonito, e mais volumoso em algumas partes, redondinho em outra, até as pernas que eram fininhas, agora, engrossaram, meus olhos não me obedeciam... Clarice, dizia: __ Você, você! Eu sei onde seus olhos caminham! E ria de mim, e eu disfarçava, afundava minha cara no chão! Ela ria, e como ria... Mas era só olhar, com minha cara de sonso, para aquele rostinho pipocado de espinhas, que por sinal lhe fazia mais bonita e diferente, que ela ficava toda vermelhinha! Vermelhinha de vergonha!
Era março, dia vinte. Um dia muito especial, seu aniversário de quinze anos; seu pai, senhor Feliciano, deu uma festa muito bonita, vararia a noite para os que soubessem beber, era uma gritaria só. Clarice estava linda, usava um vestido branco muito lindo; em seu semblante pintava-se um ar de felicidade excepcional, em seus olhos rebrilhavam uma constelação inteira, em seu sorriso um ar de mulher feita; a Clarice criança, ficava então no passado, via uma mulher, embora a idade ainda lhe puxasse para a infância. No entanto, algo parecia mudá-la. Seu pai estava bastante comovido, sua mãe também.
Dançou com seu pai, depois com seu padrinho; ficava a fitá-la, ela então veio até a mim, convidou-me para dançar também, fiquei muito lisonjeado. Dançamos. Pisava no céu, sua cintura fina, sobre as minhas mãos, seu cabelo a roçar minha face, no ritmo da dança, o perfume suave, e seu hálito fresco me entorpecia. Ela estava calada, apenas um sorriso de satisfação cobria sua face corada pelo ruge.
A um momento confiou-me ao ouvido um segredo, que me deixou desnorteado de felicidade; o mundo girava conforme dançávamos...
__ O que? Repita Clarice!
__ Te amo! Murilo...
__ Eu... Eu também Clarice! _ Sussurrei ao seu ouvido.
__ Quero ser sua a vida inteira...
O baile se estendia, estava ficando tarde, Clarice se sentou ao lado de sua mãe que estava conversando com algumas senhoras.
Fui até ela para me despedir, feliz do que ela me confidenciara, seu amor era tudo que eu queria, enfim seria correspondido. Despedi-me. Então sai todo cheio de felicidade, estava já a uma boa distância da casa dela, quando escutei uma voz me chamado aos sussurros, virei para trás, e vi Clarice correndo na minha direção. Ela me abraçou forte, me beijou sofregamente, sentia nossas almas se tocarem e se beijarem também, seus lábios úmidos e sua língua delirante amalgamavam com minha boca sequiosa por aquele tão esperado momento.
Estávamos no meio da rua, um pouco iluminada, corríamos o risco de alguém nos ver; alguns convivas já despontavam ao longe na rua indo para suas casas.
Fomos então para debaixo da ingazeira, o céu estava repleto de estrelas, batia uma refrescante brisa, e o farfalhar da ingazeira compunha uma linda sinfonia para nós dois; ela estava linda toda de branco, parecia um anjo vindo do céu para me fazer conhecer as nuvens, pois o chão não mais existia sob meus pés. Só a ingazeira e as estrelas souberam o que fizemos e como foi bom.
Deitamos cansados na grama, ríamos de loucura que fizemos e das varias maneiras que nos amamos naquele momento, ela me descobrira e eu a ela; olhávamos para o céu estrelado que se desvendava por entre os galhos da frondosa ingazeira; uma coruja piava ao longe, e nós ali, deitados exaustos de tanto nos amarmos, nossos cheiros se espalhavam carregados pela brisa que refrescava os nossos corpos extasiados e nossas faces coradas.
Clarice despediu-se de mim, pois já se fazia muito tarde. Em casa deitado na cama não conseguia esquecer daquele momento, daquele sublime momento, quando escutei vindo da direção de sua casa um barulho que parecia ser de fogos de artifício, estavam ainda em festas, deduzi; dormi, dando por mim somente no outro dia.
Levantei, chamei minha mãe e meu pai, ninguém me respondeu, sai pra fora com meus olhos coagidos pela luz intensa do sol; achei minha mãe e meu pai, um ao lado do outro, com os olhos fustigados, pareciam ter chorado, perguntei a eles o que havia acontecido, mas não me responderam, olharam pra mim, e o silêncio frio que vinha deles acusava algo terrível que havia acontecido. Minha mãe se levantou e vindo na minha direção me abraçou fortemente.
Olhei para ela e disse:
__ Por favor, mãe me conte o que aconteceu.
__ Filho algo terrível aconteceu com uma pessoa que amamos muito, especialmente você.
__ Com quem mãe pelo amor de Deus me conte! Com quem?
__ Ontem aconteceu uma briga na festa da Clarice, alguns homens estavam bêbados e houve uma discussão entre dois deles, então um homem atirou em outro, mas acabou atingindo Clarice...
__ O que mãe? Não pode ser! Como ela está mãe, por favor? Uma dor terrível me dominou o corpo e a alma naquele momento, meus olhos ardiam, pegavam fogo, as lágrimas como se fossem ácidos rasgavam meu rosto...
__ Por favor, mãe, me diz que ela está bem!
Minha mãe me apertou mais forte contra seu peito, então me disse:
__ Ela não agüentou filho...
__ Não! Não!
Fiquei mudo, não conseguia falar, minha língua gelara, engolia soluços amargos, meu peito partia-se em dor tamanha que nunca sentira antes... Vinha-me na cabeça Clarice, seu lindo rosto, seus olhos a me fitarem profundamente.
Não mais sorri por muito tempo; meus pais não me deixaram ir ao enterro, ouvia pelas conversas entre eles que nunca se viu tão forte comoção naquele dia na suas vidas, a cidade morreu para mim, e para os pais daquela menina. A ingazeira chorava comigo sem ninguém saber...
__ Pai! Pai! Por que está chorando papai?
__ Nada minha filha! E sua mãe já acendeu a vela pra vovó?
__ Sim pai! A mãe agora já tá vindo, ela falou pra mim vir aqui com o senhor... Quem é esta menina que tá enterrada aí pai? Ela era tão bonita...
__ É uma pequena princesa minha filha! Minha pequena princesa!
***
domingo, 17 de janeiro de 2010
Apresentação
Olá amigos! Fico muito feliz por vocês estarem passando por aqui, e por gostarem de compartilhar o amor pela literatura. Neste espaço publicarei meus contos e poesias, tendo comigo a espectativa de que vocês deixem seus comentários. Não deixe de compartilhar opiniões e discussões sobre literatura, além de deixar seu email, afim de que possamos manter contato e falar mais sobre esta arte.
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